8 de janeiro de 2023: O último ato da farsa do golpe no ensaio do golpe

(NO PALCO ARMADO DA PRAÇA DOS TRÊS PODERES)

8 de janeiro de 2023: O último ato da farsa do golpe no ensaio do golpe
Frida Kahlo, O veado ferido (1946).

Por Paulo César de Carvalho, em 18 de janeiro de 2024

“Daqui a pouco, será preciso recomeçar... acender tudo de novo... vestir-se... (Ouve o canto do galo.) Vestir-se... ah, as fantasias! Redistribuir os papéis... assumir o meu... (Para no meio do palco, de frente para o público.), preparar o de vocês... juízes, generais, bispos, camareiros, revoltosos que deixam a revolta congelar, vou preparar meus trajes e meus salões para amanhã... é preciso voltar para casa onde tudo, não duvidem, será ainda mais falso do que aqui... Agora saiam... Passem à direita, pelo beco... (Apaga uma última luz.) Já é de manhã.” (GENET, Jean. “O Balcão”. São Paulo: Abril, 1976, p. 178).
“Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa (...). E essa mesma caricatura se repete nas circunstâncias que envolvem a reedição do [Golpe] 18 de Brumário (....). A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos (...), eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestado o seu nome, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial.” (MARX, Karl. “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 25).
“Não acreditais que aqui também a história possa repetir-se? Um certo homem inteligente disse um dia que, quando a história dá-se ao trabalho de repetir-se, ela substitui comumente o drama pela comédia; ou pelo menos introduz elementos burlescos naquele. É preciso dizer que, por mais dramático que seja o ambiente geral, as asserções entusiásticas feitas a propósito do monolitismo ressoam como uma comédia bem lastimável, em que ninguém acredita, nem os atores, nem os espectadores. Tanto mais que o desnudamento tem de produzir-se daqui a alguns meses que não estão muito longe. (...) Não sei se, em futuro próximo, a batalha se verificará em pleno dia, ou se, esperando, ela se desenvolverá numa ordem monolítica e burocrática.” (TROTSKY, Leon. “A Revolução Desfigurada”. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1979, p. 145-146).

1. UM ENORME PASSADO PELA FRENTE: DE VOLTA PARA O FUTURO

“Abelardo I - (...) O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer (...), isso até parece teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é novo.
Abelardo II - Se é! A burguesia só produziu um teatro da classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração.
(...)
Abelardo I - Conheço uma só coisa, a realidade. (...) Sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da minha classe. (...) Todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público…
(...) Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio, se quiserem! (...) É um ladrão de comédia antiga... Com todos os resíduos do velho teatro. Quando te digo que estamos num país atrasado (...).
Recomeçar… uma choupana lírica. Como no tempo do romantismo! As soluções fora da vida. As soluções no teatro. Para tapear. Nunca! (...) Sou um personagem do meu tempo, vulgar, mas lógico. Vou até o fim.” (Andrade, Oswald de. “O Rei da Vela”. Rio de Janeiro: Mediafashion, 2008, pp. 18, 35, 38, 72 e 74).

No princípio são os “paratextos” (na consagrada categoria do teórico da literatura Gérard Genette): o título, o subtítulo e as epígrafes cumprem o papel de delimitar o tema e direcionar, pois, a problematização central da análise crítica. Sendo mais didático, a primeira parte do título faz a “ancoragem temporal” - bem como o subtítulo, a “ancoragem espacial” - do infausto fato antidemocrático; a segunda, após os dois-pontos, aponta - nas entrelinhas contextuais - que o “acontecimento” não foi obra do acaso, um evento fortuito e isolado, um mero “acidente” histórico. Em outras palavras, isso implica que os criminosos ataques conspiradores da horda neofascista - a “invasão bárbara” do Planalto - às instituições republicanas do Estado de Direito, no fatídico 8 de janeiro de 2023, se inscrevem numa longa dinâmica de fatores contraditórios pós-ditadura, sem efetiva síntese dialética “progressiva”, portanto, de afirmação dos valores democráticos. Sob essa perspectiva, não deixa de ser bastante sintomático, em primeiro lugar, que os Três Poderes - desde a eufemística “transição democrática” - tenham feito vista grossa ao célebre “paradoxo da tolerância” do filósofo austríaco Karl Popper: “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”. Em segundo lugar, que os poderes Legislativo e Judiciário tenham encenado os dois atos - “desiguais e combinados” (nos termos de Leon Trotsky) - do farsesco teatro golpista: respectivamente, o ilegítimo “impeachment” da presidenta da República democraticamente eleita, Dilma Rosseff, em 31 de agosto de 2016; e a arbitrária prisão do então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva, em 7 de abril de 2018. Em terceiro lugar, que a eleição do “inominável” ex-milico neofascista jamais deveria ser possível, consequentemente, sob a vigência de um regime - de fato - democrático-burguês. Em quarto e último, não seria mera coincidência que o STF, pois, para dissimular sua tragicômica responsabilidade in/direta pelo previsível desfecho da inglória barbárie, tenha cuidado - abstraindo seu supremo absurdo “descuido” absoluto, é óbvio - de simular o papel protagonista institucional de “guardião-mor” do Estado Democrático de Direito. A moral/imoral da história, enfim, é o que o STF estrategicamente - por paradoxal que pareça (que não apareça é claro, não?) - ocultou na exposição “APÓS 8 DE JANEIRO: RECONSTRUÇÃO, MEMÓRIA E DEMOCRACIA”. Ou seja, todo o “antes”: quer dizer, o balanço autocrítico das ações e omissões do Poder Judiciário, em última instância, cúmplice “Supremo”... Por isso, o intertítulo do “primeiro ato” - em in/versão irônica no “segundo” - traz à memória o sarcástico aforismo de Millôr (que seria dos maiores “moralistas” franceses - como se autoironiza - se não fosse brasileiro) com ar “déjà-vu” de “blockbuster” de “Sessão da Tarde”. Indo direto, pois, ao - duplo - “antes” dos dois-pontos: “No momento em que aumentam as nossas descobertas arqueológicas fica evidente que o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem.” Para não dizer que não falei, aliás, que era o dito na “Bíblia do Caos”, a propósito dos despropósitos: “Impotência pública, teu nome é Poder Público.” (FERNANDES, Millôr. "Millôr definitivo: a bíblia do caos‎". Porto Alegre: L&PM Editores, 1994, pp. 30 e 76). Resumo da ópera-bufa tupiniquim: não sendo asinino, nem precisava ser adivinho…

Homem defeca no interior do Supremo Tribunal Federal durante invasão do 8 de janeiro de 2023
Homem defeca no interior do Supremo Tribunal Federal durante invasão do 8 de janeiro de 2023 / Reprodução

Deu no “The New York Times”, em 1993: “Jair Bolsonaro: um soldado que virou político quer devolver o Brasil ao mando militar.” O título da entrevista, informativo como uma “chamada” de capa, ou - em outros termos técnico-metafóricos jornalísticos - uma espécie de resumo-síntese do “lead”, apresentou bem sumariamente ao público o caricato exótico personagem bufão do teatro periférico de farsa cômico-burlesca verde-amarela, à imagem e semelhança do histórico atraso “tropicolonial” (socioeconômico, político-ideológico, cultural e intelectual) metonimicamente representado por figuras públicas despóticas e obtusas, lideranças egressas das camadas mais empobrecidas, embrutecidas e recalcadas da classe média, e não raro de formação militar (a ambição da “estabilidade” da carreira pública, bem como de ascensão na hierarquia burocrática das Forças Armadas e, evidentemente, aquisição de respeitabilidade, prestígio e poder). O jornalista da terra do “Tio Sam” anunciou aos leitores cativos - mais bem-informados e formados - do tradicional órgão de imprensa democrático-burguês norte-americano, então, o quase incivilizado “ator” canastrão reacionário tupiniquim, o quase “silvícola” ex-capitão “antropoide” da reserva que trocou a farda pelo terno, o quartel pela Câmara. Nas linhas do texto de abertura, pois, o entrevistador apontou o risco de novo fechamento - por ironia do trocadilho no gatilho - do regime: à época, vale sublinhar que, dada a correlação de forças sociais e políticas, e considerando sua inexpressiva representatividade junto às bancadas dos partidos no espectro político do centro à extrema direita, e a ínfima adesão popular ao seu rasteiro e tautológico, autoritário e messiânico discurso salvacionista militar, não havia perigo à vista. Sua análise foi muito apressada e bem imprecisa, pois, resultando numa caracterização superdimensionada do quadro político conjuntural brasileiro. Sem entrar em maiores detalhes, além do outro grande exagero ao destacar tanto a suposta impaciência generalizada dos eleitores quanto a obsessiva ansiedade imediatista de políticos autoritários (a propósito, este “plural” mesmo, naquele contexto “progressivo” de árdua luta popular e retomada das garantias individuais e liberdades democráticas, entre as quais a reconquista do tão reclamado direito de escolher livremente o Chefe do Executivo), enfim, não é demais chamar a atenção, também, para o equivocado - muito distorcido e bem simplista - diagnóstico de “fracasso da democracia em conter a inflação e oferecer um estilo de vida melhor”, abstraindo que ambas as questões correlatas refletem, na produção e reprodução material e espiritual da existência humana, entre sutis “mediações” (pressuposto metodológico básico da dialética hegeliana herdada pela teoria do conhecimento materialista histórica), a “lei do desenvolvimento desigual e combinado” (sistematizada por Leon Trotsky) dos países periféricos e centrais na divisão mundial do trabalho e nas trocas econômicas imperialistas. Eis o tal excerto com as imprecisões e deslizes: “para muitos defensores da democracia brasileira, o fenômeno Bolsonaro representa uma luz amarela, um sinal de que as pessoas estão impacientes com o fracasso da democracia em conter a inflação e oferecer um estilo de vida melhor, e um aviso de que os políticos autoritários estão ansiosos para aproveitar esse estado de espírito e cultivá-lo”. Vale fazer a ressalva de que, não conseguindo acesso à entrevista integral, não posso afirmar com certeza se o jornalista teria pesquisado pouco e, então, sido levado a erros e distorções de foco por crer em declarações “impressionistas”, sem base concreta alguma, por exemplo, como esta do ex-milico mitômano (alçado a “mito” só uma década à frente): “As pessoas veem a possibilidade da disciplina militar tirar o país da lama”. Para concluir o parágrafo introdutório sobre esta história entrevista, três décadas antes de sua fiel horda acéfala barbarizar a Praça dos Três Poderes, recordo a admiração confessa do golpista verde-amarelo pelo ex-presidente bonapartista peruano Alberto Fujimori, que havia decretado intervenção militar - no ano do “impeachment” de Fernando Collor de Mello (que renunciou, para não perder os direitos políticos, tornando-se “inelegível” por oito anos - nos poderes Legislativo e Judiciário. Sobre o fechamento do Congresso e dos tribunais no Peru, naquele tumultuado 1992 sul-americano, o “inominável” néscio reiterou ao “The New York Times” o mantra antidemocrático: “A Fujimorização é a saída para o Brasil. Estou fazendo essas advertências porque a população é a favor da cirurgia”.

No décimo aniversário de promulgação da Carta Magna - celebrada sob o epíteto de “Constituição Cidadã” - que, após 24 anos, restabeleceu oficialmente no Brasil o Estado de Direito (jogando na lata de lixo da história, pois, a excrescência jurídica de 1967), o reacionário deputado federal Jair Bolsonaro, com as prerrogativas da im(p)unidade parlamentar, deu à revista “Veja” este autoritário “brado retumbante” criminoso: “Pinochet deveria ter matado mais gente”. Ainda em 1998, aliás, logo que o brutal ditador foi preso em Londres, o falacioso despótico facínora registrou o protesto antidemocrático na tribuna do Congresso, sublinhando o saldo positivo do bárbaro regime militar “bonapartista” chileno, sob o inadmissível argumento - bastante para a cassação de seu mandato - de que “o que o general Pinochet talvez tenha feito [certamente o fez] no passado, exterminando, matando baderneiros” seria preferível à “democracia que hoje mata [aqui] milhões pelo descaso”. Convém jamais esquecer essa - entre tantas, outra impune - gravíssima e intolerável afronta à memória dos 3.065 cidadãos assassinados, cerca de 40.000 torturados e mais de 200.000 exilados - conforme consta dos relatórios oficiais produzidos, com farta documentação, pelas comissões de verdade no país - entre 1973 e 1990. Enfim, 21 anos depois (sintomática “coincidência” perversamente trágica, a mesma maldita duração dos cinco arbitrários desgovernos - do Golpe de 64 até o Colégio Eleitoral de 85 - das “Farsas Armadas”), no nono mês do mandato presidencial do ex-capitão terrorista, o intolerante inominável enalteceu outra vez o sórdido sádico carrasco fardado, desautorizando acintosa e sarcasticamente a incisiva denúncia da alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, do racismo estrutural e da violência genocida da polícia brasileira. Em tão impiedoso cruel ataque à honra do general legalista Alberto Bachelet, preso, barbaramente torturado e assassinado em 1974 pelos órgãos repressivos do regime, vociferou em arrogante desdém pelo atroz sofrimento da futura presidente do país - a primeira mulher, e em dois mandatos - diante da irreparável e inesquecível perda paterna: “se não fosse o pessoal do Pinochet derrotar a esquerda em 73, entre eles seu pai, hoje o Chile seria uma Cuba. Eu acho que não preciso falar mais nada”. Aproveitando a deixa de outra desgraçada “coincidência”, o arrogante empoderado ex-milico, logo em seguida, disparou pública e despudoradamente contra o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, aviltando-lhe também a dolorosa precoce privação paterna, aos dois anos de idade: o estudante de Direito Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira “desapareceu” nos obscuros mórbidos porões do Doi-Codi do Rio de Janeiro, no mesmo fatídico ano em que Bachelet ficou órfã. Ignorando os limites constitucionais do cargo, que lhe vedam “atentar contra os direitos humanos, entre os quais os direitos políticos, individuais e sociais”, bem como, consequentemente, “contra o cumprimento das leis”, eis outra gravíssima - impune - afronta contra os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele.” Aliás, a propósito dos despropósitos, de volta para o passado, mais precisamente duas décadas após a tal “transição democrática” - negociada “por cima” com os usurpadores fardados do poder político - representada pelo “teatro” farsesco do Colégio Eleitoral, o virulento apologista da ditadura militar, ridicularizando ostensivamente as buscas da “Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos” pelas ossadas dos militantes exterminados pelos agentes repressivos na região do Araguaia, colou um cartaz na porta de seu gabinete na Câmara dos Deputados, com requintes de sádico sarcasmo, cujo slogan era o seguinte: “DESAPARECIDOS DO ARAGUAIA/ Quem procura osso é cachorro”. Em entrevista à Agência Estado, com a autoritária soberba mais exacerbada pela “ampla, geral e irrestrita” - paradoxo prototípico das frágeis instituições democrático-burguesas - im(p)unidade parlamentar, o egocêntrico histriônico escroque deu esta descarada declaração diametralmente oposta aos princípios constitucionais basilares do Estado de Direito: “A mentira deles não é a verdade da história. O povo tem de dar graças a deus aos militares. Tenho o direito de me expressar.”

Ainda em 2005, quando o presidente Lula nomeou Dilma Rousseff para assumir o Ministério da Casa Civil (em lugar de José Dirceu, acusado por Roberto Jefferson de ser o mentor do “escândalo do mensalão”), o despótico deputado “sem nenhum caráter”, após render hiperbólicas homenagens aos criminosos militares que teriam salvado “corajosamente a “Pátria” do “terror vermelho da guerrilha”, aponta a indefectível falocêntrica cínica “arminha” misógina contra a Ministra-Chefe, disparando-lhe do alto da tribuna legislativa - paradoxal e impunemente - os mais baixos impropérios (de uma absoluta absurda falta de decoro “federal” - parafraseando Lupicínio Rodrigues, com o trocadilho no gatilho): “O que pesou, com certeza, para que S.Exª. (Sua Excelência), ocupasse esse Ministério foi seu passado de integrante da quadrilha que assaltou, no Rio de Janeiro, a casa de uma mulher muito íntima a Adhemar de Barros, levando dois milhões e meio de dólares (…) Depois desse elogio a Dilma Rousseff, até para desqualificar a assaltada, quero tachá-la de amante de Adhemar de Barros. Dilma Rousseff, por enquanto, não falarei do seu passado nesta Casa. Se tentar reagir, exporei seu passado. A tortura que S.Exª. sofreu foi fruto de abstinência.” Onze anos depois, mais precisamente no “Dia D” da aprovação do processo golpista do “impeachment” da presidenta petista, em 17 de abril de 2016, convém não esquecer a superlativa antidemocrática declaração de voto do devoto daquele tenebroso sanguinário carrasco do regime autoritário fardado:

“Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história nessa data pela forma como conduziu os trabalhos dessa Casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.”

Prosseguindo de volta para o futuro (mascando clichê dessa reprise de “blockbuster” de “Sessão da Tarde”), para encerrar este sumário perfil político-biográfico do “inimigo público n⁰ 1” do Estado de Direito, finalmente, lembramos que o ex-milico do baixo clero fardado, na iminência da derrota à reeleição, indebitamente se apropriou do “feriado cívico” de 7 de Setembro - e da efeméride dos “200 anos de Independência do Brasil” (sic) - para fazer campanha. Elevando o tom/rebaixando o nível, enfatizou ameaçadora e arbitrariamente, para delírio da bárbara horda fanática, os poderes Legislativo e Judiciário, exortando-a à “luta do bem contra o mal”, em defesa do que “é melhor para o Brasil”. Em convocação da brigada neofascista para o ato, pelas indefectíveis redes sociais “paralelas” das “fake news”, o “bolsomito” da extrema direita, assim, evocou vários sintomáticos episódios históricos de ruptura democrática no Brasil, enfatizando - pela milésima vez, impunemente - o famigerado golpe militar de 1964: “Quero dizer que o brasileiro passou por momentos difíceis, a história nos mostra (...). A história pode se repetir. O bem sempre venceu o mal”.

2. UM ENORME FUTURO POR DETRÁS: DE VOLTA PARA O PASSADO

“Boa noite, amigos! Este espetáculo é dedicado aos únicos brasileiros que, nestes 20 anos, jamais deixaram um minuto de combater o Poder Dominante. Nos referimos aos pombos de Brasília, que, além de cagar indistintamente na cabeça de todas as autoridades que transitam na praça dos Três Poderes - Exército, Marinha e Aeronáutica - arrulham sempre, dia e noite, corajosamente à passagem de cada economista, cada milico, cada tecnocrata (...).” (Saudação do autor [Millôr Fernandes], no espetáculo “O MPB4 e o Dr. Çobral vão em busca do Mal”, de 1983).

No trigésimo aniversário da promulgação da “Constituição Cidadã”, o então presidente do STF Dias Toffoli, à saída da seção eleitoral, registrou à imprensa sua inabalável “fé” no rito democrático e no ex-milico “mito” que seria o - futuro do passado - Chefe do Executivo: “Hoje o Brasil elege o futuro presidente. É importante lembrar que o futuro presidente terá como seu primeiro ato jurar a Constituição. É importante que se cumpra o artigo 3º da Constituição”. Com a Carta Magna em mãos, o Excelentíssimo evangelista repetiu aos jornalistas - em tom bíblico - os tais supremos preceitos expressos neste artigo terceiro: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: primeiro, construir uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional; terceiro, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; quarto e importantíssimo, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Naquele mesmo 28 de outubro de 2018, o ministro-minion se esforçou para justificar os tais “sagrados” princípios constitucionais, então, proclamando que “o futuro presidente deve respeitar as instituições, deve respeitar a democracia, o Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário, o Congresso Nacional e o Poder Legislativo”. O eminente togado sublinhou ainda, didaticamente, o obrigatório respeito do candidato vitorioso no pleito (diria Drummond, “seria uma rima, não seria uma solução”) ao adversário derrotado, a fim de “garantir a pluralidade política como está na Constituição, respeitando também a oposição que se formará”. Em sua prédica político-pedagógica “aritmética” à mídia, o “terrivelmente cristão” (o ex-coroinha trocou a batina da igrejinha de Marília pela toga de Brasília) foi “religiosamente” enfático: “Aqueles que não lograrem êxito devem ser respeitados também porque a sociedade tem suas forças distintas e é o somatório que forma uma nação”. Essa ladainha hipócrita foi ouvida poucas horas antes do fim da apuração dos votos, confirmando o previsível triunfo do sórdido candidato bolsonazi. A propósito dos despropósitos (eis a tão irônica "pluralidade"), vale lembrar que, no dia seguinte à sua vitória no primeiro turno (8/10/2018), o caricato déspota não esclarecido deu a seguinte "democrática" declaração intimidatória: “Não têm preço as imagens que vejo agora da Paulista e de todo o meu querido Brasil (sic). Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder a semana que vem de novo. Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. Uma semana antes do segundo turno, enfim, o falso “Messias” fanático não deixaria mesmo dúvida de que seguiria à risca - não é mesmo? - os princípios fundamentais da “bíblia jurídica” nas mãos do supremo - “Iscariotes” - pregador togado: “Petralhada, vai tudo vocês (sic) para a ponta da praia. Vocês não terão mais vez em nossa pátria (…). Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil”; “Essa pátria é nossa. Não é dessa gangue que tem uma bandeira vermelha”.

De volta a 30 de outubro de 2022, logo após confirmada a vitória de Lula no segundo turno do pleito presidencial, para não dizer que não falei das flores, a bem da justiça, convém passar a palavra à Excelentíssima Rosa Weber, então presidente do STF (a ministra que presidiu, por sua vez, à época das eleições de 2018, o TSE): “Hoje, mais uma vez, estamos nós, brasileiros e brasileiras, a celebrar a democracia, o princípio democrático, a vitória do princípio democrático, cuja essência reside na consagração da vontade popular majoritária que se expressa nesta data no segundo turno das nossas eleições gerais (...). Saiu fortalecida nossa democracia, saíram fortalecidas nossas instituições democráticas, saiu fortalecido nosso Estado Democrático do Direito, que esse STF continuará a defender de forma intransigente enquanto guardião da nossa Constituição”. Naquela coletiva de imprensa do TSE, a ministra Rosa (antes, como as de Cartola, não falasse…) consignou ainda à Nação, com exultante “fé” democrática, que, “a despeito dos tempos conturbados por intensa desinformação e exacerbada polarização, também hoje as eleições transcorreram em clima de segurança e tranquilidade, conduzidas com maestria pelo TSE e realizadas pela familia eleitoral como um todo”. A Excelentíssima Rosa “falante”, obviamente, não falou o nome do “inominável” que, naquele simbólico “cívico” ufanista 7 de Setembro de 2022, falou e disse à “patriotária” (no providencial neologismo sarcáustico do “Metaléxico” po/ético de José Paulo Paes) intrépida antidemocrática tropa de choque: “Sabemos que temos pela frente uma luta do bem contra o mal, um mal que perdurou por 14 anos em nosso país, que quase quebrou a nossa pátria e que agora deseja voltar à cena do crime (...). Podem ter certeza, é obrigação de todos jogarem dentro das quatro linhas da nossa Constituição. Com uma reeleição, nós traremos para dentro dessas quatro linhas todos aqueles que ousam ficar fora delas. (...) Fico feliz em ter ajudado a chegar até vocês a verdade; e que (sic) o conhecimento liberta. Hoje todos sabem o que é o Poder Executivo, a Câmara dos Deputados, o Senado, e todos sabem o que é o STF”. Evidentemente, seria um mero detalhe que, diante das ensurdecedoras vaias dos fiéis neofascistas à simples menção do “Messias” à suposta tão sólida Suprema Corte, o “democrático” presidente tivesse registrado religiosamente o perverso clichê falacioso de que “A voz do Povo é a voz de Deus”, havendo já declarado guerra - pela milésima vez, impunemente - aos ministros, três meses antes (em 7/06/2022), em autoritário protesto contra a votação da regra constitucional do “marco temporal” (no julgamento em que a Segunda Turma do STF derrubou a decisão monocrática de seu lugar-tenente “terrivelmente evangélico” Nunes Marques): “Eu fui do tempo que decisão do Supremo Tribunal Federal não se discute, se cumpre (sic). Eu fui desse tempo, não sou mais (...). Certas medidas saltam aos olhos dos leigos. É inacreditável o que fazem. Querem prejudicar a mim e prejudicam o Brasil”. Qualquer semelhança com esta fotográfica radiografia política do autor de “1984”, aliás, aos olhos róseos bem fechados, seria só uma mera coincidência:

"Dá para sentir isso mais uma vez quando olhamos suas fotografias (...). É patético, o rosto canino, o rosto de um homem que sofre sob intoleráveis malfeitos. De um modo mais viril, ela [a foto de Adolf com a camisa marrom dos primeiros tempos] reproduz a expressão de inúmeras figuras do Cristo crucificado, e não há dúvida de que é assim que Hitler se vê a si mesmo. A primeira causa pessoal para sua queixa contra o universo só pode ser adivinhada; mas, seja qual for, a queixa está ali. Ele é o mártir, a vítima. Sente-se, como no caso de Napoleão, que ele está lutando contra o destino." (ORWELL, George. “O que é fascismo e outros escritos”. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 29).

Isso também não teria nada a ver, evidentemente (o trocadilho é ironicamente revelador), com esta acintosa declaração insubmissa de 28 de abril de 2021: “Eu não fechei comércio, não determinei que ninguém ficasse em casa, não destruí emprego. Mas o Supremo Tribunal Federal disse que prefeito e governador podiam fazer o que bem entendessem. Estão fazendo. Falam tanto em Constituição, os que defendem a Constituição, e estupraram o artigo 5º da Constituição”. Ademais, exatamente duas semanas antes dessa inadmissível acusação de supremo “estupro constitucional” (em 14 de abril), o notório bolsocolostômico genocida deu o recado aos apáticos impávidos máximos togados: “Amigos do Supremo Tribunal Federal, daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui. Eu vi que um ministro despachou lá um processo para me julgar por genocídio. Olha, quem fechou tudo e está com a política na mão não sou eu. Agora, eu não quero aqui brigar com ninguém, mas estamos na iminência de ter um problema sério no Brasil”. Bem como tudo isso e aquilo tudo, evidentemente, não teria nada a ver, também, com aquela intimidatória declaração do deputado federal Eduardo Bolsonazi, em 9 de julho de 2018, num cursinho preparatório - em Cascavel (PR) - para concurso da PF, interrogado sobre a possibilidade de o STF impedir que o patriarca da “familícia” - caso vencesse já no primeiro turno do pleito - assumisse a Presidência da República; e, considerando essa hipótese, se caberia, logo, intervenção do Exército. Eis a sua ameaçadora resposta despótica ao tal concursando:

“Aí já está se encaminhando para um estado de exceção. O STF vai ter que pagar para ver. E aí quando ele pagar para ver, vai ser ele contra nós. Você está indo para um pensamento que muitas pessoas falam, e muito pouco pode ser dito. Mas se o STF quiser arguir qualquer coisa - recebeu uma doação ilegal de cem reais do José da Silva e então impugna a candidatura dele. Eu não acho isso improvável, não. Mas aí vai ter que pagar para ver. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá: se quiser fechar o STF, você sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo não (...). O que que é o STF, cara? Tira o poder da caneta de um ministro do STF, o que que ele é na rua? Você acha que a população... Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor do ministro do STF?”
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Charge de Renato Aroeira / Reprodução - Instagram @arocartum

Ninguém em sã consciência poderia ter levado a sério, realmente, essa tão “irreal” irresponsável ameaça autoritária, como a Excelentíssima Rosa “falante”, então à frente do TSE, com sua inabalável serena segurança decana, bem tranquilizou até mesmo os mais exasperados - bastante reticentes - ardorosos democratas: “No Brasil, as instituições estão funcionando normalmente. E juiz algum no país - juízes todos no Brasil honram a toga - se deixa abalar por qualquer manifestação que eventualmente possa ser compreendida como conteúdo inadequado”. A propósito do - reiterado, reiteradamente impune - despropósito, a “falante” Rosa Excelentíssima falaria, com sua decana segurança serena à frente do STF, então, o que até mesmo os ardorosos democratas - mais exasperados - bem reticentes, bem tranquilizou: “Ao velar pela normalidade e regularidade do processo eleitoral neste ano de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral, uma vez mais, garantiu a certeza e a legitimidade dos resultados das urnas, que de todos merecem respeito, e assegurou, em fiel observância aos postulados maiores da nossa Constituição, o primado da nossa vontade soberana de quem o povo é a fonte real de todo o poder”.

Enfim, o fatídico 8 de janeiro de 2023 que o diga de fato, ou não?

3. VEJA BEM: O ENSAIO DO GOLPE DE ESTADO NÃO FOI ENSAIADO?

“LEAR: Como, estás louco? Mesmo sem olhos, um homem pode ver como anda o mundo. Olha com as orelhas. (...) Já viste um cão da roça ladrar prum miserável? (...) E o pobre diabo correr do vira-lata? Pois tens a imagem da autoridade; até um vira-lata é obedecido quando ocupa um cargo. Oficial velhaco, suspende tua mão ensanguentada! (...) Os buracos de uma roupa esfarrapada não conseguem esconder o menor vício; mas as togas e os mantos de púrpura escondem tudo. Cobre com placas de ouro e, por mais forte que seja a lança da justiça, se quebra inofensiva. Um crime coberto de trapos a palha de um pigmeu o atravessa. Não há ninguém culpado, ninguém - digo, ninguém. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver aquilo que não vês.” (SHAKESPEARE, W. “O Rei Lear”. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2020, p. 113).

Antes não precisasse mesmo dar resposta à dupla mesma óbvia pergunta retórica: que encerrou o “segundo ato”, reiterada no intertítulo deste “terceiro”... Se o título da exposição “comemorativa” do STF, ocultando os precedentes centrais da “arquitetura da destruição” neofacista, não fosse - muito sintomaticamente, é claro - precisamente este: “APÓS 8 DE JANEIRO: RECONSTRUÇÃO, MEMÓRIA, DEMOCRACIA”. E se fosse impossível não reconhecer no vídeo institucional de divulgação, de cara, a cara do invulgar togado que, descaradamente, declarou: “A brutalidade dos ataques daquele 8 de janeiro não foi capaz de abalar a democracia. O repúdio da sociedade e a rápida resposta das instituições demonstram que em nosso país não há espaço para atos que atentam contra o Estado Democrático de Direito”. Isto é, se não fosse possível reconhecer sequer o nome aposto no vídeo de quem despudoradamente declarou, em palestra comemorativa - na FADUSP - do aniversário de três décadas da tal “Constituição Cidadã” aviltada, que “tanto a direita conservadora quanto a esquerda cometeram erros antes do golpe, mas preferiram não assumi-los, jogando a culpa nos militares”, concluindo - hipocritamente sofístico, em “Novilíngua” cúmplice - o seguinte: “Por isso que hoje, depois de aprender com o atual ministro da Justiça, Torquato Jardim, eu não me refiro mais nem a golpe nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”. Ou seja, se não fosse identificável, decerto, nem aos ouvidos bem abertos, a mesma voz do ministro-minion, enfim, que rendeu elogio - em evento no Palácio do Planalto, em 1⁰ de agosto de 2020 - ao amigo ex-milico, pouco mais de um mês antes do fim de seu biênio na Presidência do STF: “Aproveito, portanto, o ensejo para agradecer ao presidente da República Jair Bolsonaro, conjuntamente com os ministros de Estado, pelo diálogo e pela cooperação em prol da construção de um país mais justo e que trilhe o caminho do desenvolvimento social, econômico e regional”. Quer dizer, que fosse mesmo inindentificável o nome da cara da voz que, poucos “Dias” depois, endossou a enojosa declaração elogiosa ao “déspota sem esclarecimento” à incrédula mídia: “No relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e seus ministros de Estado, nunca vi diretamente nenhuma atitude contra a democracia”. A mesma Sua Subserviência que havia convidado, poucos “Dias” - precisamente, cinco antes do primeiro mês- após deixar o posto (aliás, em plena pandemia, ainda, naquele 5 de outubro de 2020), o senador David Samuel Alcolumbre Tobelem, então presidente do Congresso Nacional, o então indicado “terrivelmente evangélico” ao STF Kássio - “Konká” - Nullis (ops!) Marques (sem “xis”, com dígrafo), e o então “inominável” néscio neofascista Chefe do Executivo, em síntese, para assistir ao jogo do Palmeiras contra o Ceará. Haveria de ser só mero acaso que tenha sido, é claro, o mesmo ministro-minion torcedor - “traidor”, afinal, de qual “causa”? - quem havia comemorado a “vitória” com cinco pizzas em sua casa??? Fala sério: “Eu sou um cara que gosta de unir as pessoas, que todo mundo se divirta. De confraternizar. Foi uma confraternização, ninguém falou de trabalho. Não estávamos aqui para discutir assunto sério”.

A bem da verdade, embora “verde”, vide o vídeo institucional, essa história também foi - embora não a “verde-rosa” de Cartola, nem propriamente “Carnaval” - Rosa: “O ataque à democracia constitucional brasileira em 8 de janeiro de 2023, com a abominável invasão da sede dos Três Poderes da República e devastação do patrimônio público, inédito quanto à Suprema Corte do país em seus quase duzentos anos de existência, há de ser sempre lembrado para que nunca se repita! E deixa como lição a necessidade de incessante cultivo dos valores democráticos e da defesa intransigente do Estado Democrático de Direito”. Evocando no vídeo a Rosa “falante”, aliás, o também aposentado Celso de Mello deixou bem registrado: “A data de 8 de janeiro de 2023 (‘um dia que viverá eternamente em infâmia’, como enfatizou a eminente ministra Rosa Weber, então presidente do STF) representa, por efeito da invasão multitudinária e criminosa nela perpetrada contra os Poderes do Estado, o gesto indigno, desprezível e estigmatizante daqueles que, agindo como delinquentes vulneradores da ordem constitucional, não hesitaram em dessacralizar os símbolos majestosos da República e do Estado Democrático de Direito. Relembrar, sempre, a data de 8/1/2023, para repudiar o ultrajante vilipêndio cometido por mentes autoritárias contra o Estado de Direito - e para jamais esquecê-la -, há de constituir expressão de nosso permanente e incondicional respeito à Lei Fundamental do Brasil e de reafirmação de nossa crença na preservação do regime democrático, na estabilidade das instituições da República e na intangibilidade das liberdades essenciais do Povo de nosso País!” A propósito do despropósito de 8 de janeiro de 2023, para não dizer que não falei do que o então ministro disse sobre aquilo que, em 9 de julho de 2018, falou ameaçadoramente o “familiciano” filho “03”, vejam - “com os ouvidos” - vocês:

“Essa declaração, além de inconsequente e golpista, mostra bem o tipo (irresponsável) de parlamentar cuja atuação no Congresso Nacional, mantida essa inaceitável visão autoritária, só comprometerá a integridade da ordem democrática e o respeito indeclinável que se deve ter pela supremacia da Constituição da República!!! Votações expressivas do eleitorado não legitimam investidas contra a ordem político-jurídica fundada no texto da Constituição! Sem que se respeitem a Constituição e as leis da República, a liberdade e os direitos básicos do cidadão restarão atingidos em sua essência pela opressão do arbítrio daqueles que insistem em transgredir os signos que consagram, em nosso sistema político, os princípios inerentes ao Estado democrático de Direito”.

Não seria demais recordar, também, o que disse o “familiciano” patriarca dois dias depois de derrotado, nem o que falou, ainda por cima (ou por baixo), respectivamente, a Excelentíssima Rosa diletante do Cerrado:

I -

“Quero começar agradecendo os 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último dia 30 de outubro. Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir. A direita surgiu de verdade em nosso país. Nossa robusta representação no Congresso mostra a força dos nossos valores: Deus, pátria, família e liberdade. Formamos diversas lideranças pelo Brasil. Nossos sonhos seguem mais vivos do que nunca. Somos pela ordem e pelo progresso. Mesmo enfrentando todo o sistema, superamos uma pandemia e as consequências de uma guerra.

Sempre fui rotulado como antidemocrático e, ao contrário dos meus acusadores, sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição. Nunca falei em controlar ou censurar a mídia e as redes sociais. Enquanto presidente da República e cidadão, continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição. É uma honra ser o líder de milhões de brasileiros que, como eu, defendem a liberdade econômica, a liberdade religiosa, a liberdade de opinião, a honestidade e as cores verde-amarela da nossa bandeira”.

II -

“O Supremo Tribunal Federal consigna a importância do pronunciamento do Presidente da República em garantir o direito de ir e vir em relação aos bloqueios e, ao determinar o início da transição, reconhecer o resultado final das eleições”.

De volta para o passado, em 8 de janeiro de 2023, como a história deixaria comprovado, “era uma vez”...

4. CRÔNICA DE UMA FARSA ANUNCIADA

"Quando se comparam seus pronunciamentos de um ano atrás com os que foram feitos quinze anos antes, o que impressiona é a rigidez da mente, o modo como sua visão de mundo não evolui. É a visão fixa de um monomaníaco, não suscetível de ser muito afetada pelas manobras temporárias da política do poder." (ORWELL, George. “O que é fascismo e outros escritos.” São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 27-28).

Ainda que os processos históricos sejam irrepetíveis em sua dinâmica conjuntural particular, resultante da síntese dialética de uma série de elementos “desiguais e combinados” que lhe conferem singularidade, isso não implica que não haja também, em contrapartida, um conjunto de fatores estruturais comuns entre eles (guardadas as devidas diferenças espaciotemporais, portanto, que se “repetem”). Sob tal perspectiva teórico-metodológica, aliás, é que Marx fez esta ressalva muito providencial: “Esse caráter geral (...), ou esse elemento comum, discriminado pela comparação, está organizado de uma maneira complexa e diverge em diversas manifestações (...). As determinações que valem para a produção em geral devem ser precisamente separadas, a fim de que não se perca de vista o essencial por causa da unidade (...).” (MARX, Karl. “Crítica da economia política”. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 242). Implícita, vale dizer, nestas linhas epistolares pedagógicas de Engels: “Mas a nossa concepção da história é, sobretudo, um guia para o estudo (...). É necessário voltar a estudar toda a história, devem-se examinar em todos os detalhes as condições de existência das mais diversas formações sociais antes de procurar deduzir delas todas as ideias políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas etc. que lhes correspondem (...).” (Carta de Engels a Conrad Schmidt, 1890. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, “Cultura, arte e literatura: textos escolhidos”. São Paulo: Expressão Popular, 2012, p.107). Não é demais deixar explícito aos leitores menos familiarizados - para não dizer “leigos” - com a teoria do conhecimento materialista histórica e dialética, ainda, que as notas complementares da “dupla dinâmica” revolucionária pressupõem o princípio de que o Estado é o organismo político-ideológico, em linhas gerais, de dominação de classe; bem como, no modo de produção capitalista, as variações de “regime” - no espectro da democracia burguesa ao bonapartismo, da ditadura militar ao fascismo (fenômeno já da crise econômica do “entreguerras”) - implicam a dominância ou exclusividade das instituições burocráticas/aparelhos estatais por meio de que, direta ou indiretamente, as frações hegemônicas do capital exercem o controle/o poder. Conforme a formulação precisa de Leon Trotsky, pois, eis as questões que, especificamente, aqui importa destacar:

“Os fundamentos do capitalismo continuariam invioláveis mesmo se a social-democracia viesse a conquistar a maioria [eleitoral]. (...) A democracia atingiu o cúmulo do absurdo. Na época do desenvolvimento orgânico e metódico do capitalismo (...), a democracia desempenhou um grande papel histórico, inclusive o de educar o proletariado. Na Europa é que desempenhou o seu maior papel. (...) O fascismo é o segundo titular da burguesia com direito ao poder. (...) Sabemos que na Itália o fascismo, a fim de salvar e consolidar a sociedade burguesa, foi obrigado a entrar em antagonismo violento não apenas com a social-democracia, como também com os partidos da burguesia. (...) Não se devem apresentar as coisas como se todos os órgãos políticos da burguesia agissem em perfeita harmonia. Felizmente, não é assim. A anarquia econômica é completada pela anarquia política. (...) Em outras palavras, a burguesia não pode criar um regime que lhe permita apoiar-se, pacificamente, não só nos operários, como na pequena burguesia arruinada, sem acarretar despesas com as reformas sociais ou com os abalos da guerra civil.” (TROTSKY, Leon. “Revolução e Contra-Revolução na Alemanha”. Lisboa: CLB, s.d., p. 96-97).

Sendo didaticamente bem cauteloso, para evitar os tão perigosos desvios - por inocente ignorância ou oportunista má-fé - da “superinterpretação” (para não dizer que não falei de Umberto Eco), nos quadros cíclicos de refluxo das condições econômicas internacionais, é necessário substituir as forças social-democratas auxiliares do grande capital por uma ou outra de suas “titulares rivais”. Como bem sublinhou Trotsky, o enorme desafio para as frações hegemônicas da classe dominante, contudo, é conjugar “a supressão das despesas gerais das reformas democráticas” - eis o “xis” do problema, atenção - “sem as despesas gerais de um golpe de Estado fascista” (Idem, ibidem). A propósito dos despropósitos, convém transcrever-lhe esta clássica síntese da mesma complexa equação política:

“Ela está condenada a seguir de crise em crise, de miséria em miséria, de mal a pior. De acordo com cada país, as consequências da decrepitude do capitalismo se expressam sob formas diversas e com ritmos desiguais. Porém, o fundo do processo é o mesmo em todos os lados. A burguesia conduziu a sociedade à bancarrota. Não é capaz de assegurar ao povo nem o pão nem a paz. E precisamente por isso que não pode suportar a ordem democrática por muito mais tempo, é compelida a esmagar os operários com a ajuda da violência física (...). A função histórica do fascismo é esmagar a classe operária, destruir as suas organizações, sufocar a liberdade política, quando os capitalistas se sentem incapazes de dirigir e dominar com a ajuda da maquinaria democrática.” (TROTSKI, Leon. “Aonde vai a França?” Brasília: Editora Kiron, 2012, p. 76).

Posto isso tudo e tudo aquilo, enfim, como ponto de partida “para atar as duas pontas” (na expressão do ilustre narrador machadiano) dessa não imprevisível recente encenação histórica golpista farsesca da horda verde-amarela neofascista na Praça dos Três Poderes, autorizo-me a reproduzir (na “função-autor”, em acepção mais ampla que a do “arqueólogo do saber” e da “ordem do discurso”, o filósofo-historiador do conhecimento e da “microfísica do poder” Michel Foucault) cinco curtos parágrafos da primeira parte daquele artigo - sob a assinatura, logo, do autor deste, também - “Como chegamos à Era dos Bolsonauros”, publicado em minha coluna no “Esquerda Online” (em 15/07/2019; a segunda e última, sem demora, já em 19/07/2019). O que me poupa, ao menos, parte do trabalho de análise das incompatibilidades e incompatibilidades entre os termos da equação “Estado Democrático de Direito”, “regime bonapartista togado” e “governo neofascista”; bem como de detalhar os pressupostos do diagnóstico da sintomática dinâmica regressiva cujo ponto extremo foi a “invasão bárbara”. Vejamos:

A eleição de Bolsonaro não foi obra do acaso, fruto circunstancial da vontade de um grupo político ou consequência pontual da ignorância dos eleitores: não se pode compreender a chegada da extrema-direita ao poder senão como resultado da própria decadência do capitalismo. No marco da grave crise econômica aberta em 2008, novas cartas foram colocadas à mesa: não só não era mais possível garantir as mínimas conquistas sociais aos trabalhadores, mas também era preciso suprimi-las, para que os grandes grupos do capital financeiro-industrial continuassem a ganhar seus lucros exorbitantes. Nesse contexto bem desfavorável, evidentemente não haveria mais espaço para governos de conciliação de classes: o golpe parlamentar-judiciário deixou isso bem claro, varrendo do cenário o “reformismo” colaboracionista lulopetista. A prisão da maior liderança popular, que encabeçava as pesquisas eleitorais, bem como o cerceamento à sua liberdade de expressão, proibido de dar entrevistas para não interferir no resultado do pleito, indicavam que a burguesia precisava de um governo de “puro-sangue”: para aprofundar a exploração, aprovando o imoral “pacote de maldades”, era urgente neutralizar as vozes contrárias.

Assim, logo após o “impeachment” da presidenta Dilma Rousseff, o usurpador Michel Temer (que, não se esqueça, foi seu vice-presidente nos dois mandatos), mesmo com baixíssimo índice de aprovação, conseguiu aprovar a famigerada contrarreforma trabalhista. Isso, contudo, levou os tradicionais partidos de direita a uma estrondosa derrota nas urnas: os candidatos do PMDB e do PSDB, respectivamente, Henrique Meirelles e Geraldo Alckmin, não alcançaram juntos nem 3% no primeiro turno. Apesar da surpreendente recuperação do PT, com a transferência de uma parcela significativa dos votos de Lula para Fernando Haddad, o candidato pseudo-reformista “neodesenvolvimentista” - entre aspas, segundo Plínio de Arruda Sampaio Jr. - foi derrotado: a propaganda massiva da Lava-Jato contra a esquerda, demonizada pela grande mídia golpista - e pelas “fake news” paralelas - como “o” artífice do tentacular esquema de corrupção institucional, além da imagem político-ideológica negativa associada à “ditadura venezuelana”, viabilizou a desastrosa vitória da extrema-direita. Em síntese, eis o resumo da ópera-bufa tupiniquim: a rejeição tanto dos partidos de direita tradicionais quanto do Partido dos Trabalhadores fez surgir como alternativa, aos olhos fatigados do povo, a figura grotesca do Messias “Salvador da Pátria”.

Ou seja, isso significa que não dá para compreender a ascensão e o triunfo de Bolsonaro sem considerar o contexto histórico da profunda crise econômica, que tornou miseráveis os pobres, empobreceu a classe média baixa e destruiu os sonhos de escalada social da classe média alta. Na verdade, não é possível explicar o fenômeno reacionário que deu corpo ao “Mito” sem voltar no tempo: há três décadas, quando ruiu a “Cortina de Ferro”, a derrocada do “Império Vermelho” deu novo fôlego ao capitalismo, uma vez que a destruição dos Estados operários burocratizados implicou a abertura de novos mercados para as grandes corporações contornarem a crise. Nesse quadro de ofensiva neoliberal, por exemplo, é que se localizam os dois governos de FHC: diante da decadência desse projeto, então, como bem analisou o historiador Henrique Canary, é que “ascenderam no poder, principalmente na América Latina, vários governos de Frente Popular e nacionalistas burgueses, que representaram uma vitória distorcida das massas contra os governos burgueses tradicionais.” (CANARY, Henrique. “Alguns elementos para uma visão sobre a IV etapa”. In: “Marxismo Vivo: Nova Época, n⁰ 8, 2016, Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional - LIT-QI”, p. 40).

Entretanto, se tal contexto abriu caminho para os dois primeiros governos de colaboração de classes de Lula, com migalhas reformistas, o primeiro governo de Dilma já se inscrevia numa conjuntura bem mais delicada. Nas palavras de Canary, “com a eclosão da nova crise econômica em 2007-2008”, verificou-se “o aprofundamento da crise social e econômica dos Estados Unidos (...), a entrada da China na crise econômica (...), a crise dos governos de colaboração de classes e nacionalistas burgueses na América Latina” (Idem, ibidem). Sobre isso, aliás, vale recordar também o que escreveu Valério Arcary, sublinhando o início de “uma época em que reformas são mais difíceis”, em que as crises “confirmam que os limites históricos do capitalismo estão mais estreitos”, em que “todos os Estados, mesmo aqueles que têm uma posição dominante no mercado mundial, estão condicionados pela pressão do capital financeiro”, em que “os mágicos keynesianos” que “substituíram os artistas neoliberais à frente de vários governos (...) enfrentam muitas dificuldades para 'salvar' o capitalismo dos capitalistas.” (ARCARY, Valério, “O martelo da história”. São Paulo: Sundermann, 2016, p. 16).

Vale recordar que, quando os governos petistas de “frente popular”/ ”frente ampla” sucederam os tradicionais governos neoliberais, o que estava em jogo - ilusionismo no espelho de circo democrático-burguês - era exatamente essa paliativo-tentativa “milagrosa” de “salvar o capitalismo dos capitalistas”. A habilidade do carismático “estadista” demagogo com verniz de esquerda, numa situação econômica mundial ainda favorável, não só deu fôlego às grandes corporações, então, confirmando a sua aforismática e indecorosa frase de que “os banqueiros nunca ganharam tanto quanto nos governos do PT”, mas também anestesiou os trabalhadores com a miragem fetichista de “aburguesamento”, através da ampliação de crédito bancário, da relativa melhora de poder aquisitivo e do consequente aumento de consumo. Não fosse por isso, aliás, o ex-aristocrata operário não teria agradado a gregos e troianos: sem essa conciliação farsesca (eis a “mágica” do messianismo popululista) entre os de cima e os de baixo, há de se convir que o ardiloso pelego não teria conseguido eleger a pouco “empática” - com o perdão do paradoxo irônico hiperbólico-eufemístico - Dilma. Eis, enfim, o balanço/a caracterização do historiador e dirigente marxista-revolucionário Arcary: “Uma análise sóbria ou pelo menos equilibrada do governo Lula deve concluir que ele foi uma experiência reformista quase sem reformas que se beneficiou de uma conjuntura internacional favorável, todavia efêmera  (...). O governo Lula foi o reformismo da governabilidade do regime democrático-liberal. O reformismo mantém audiência política porque se apoia na ilusão de que mudanças são possíveis sem lutas políticas que, para serem vitoriosas, devem ir além dos limites do capitalismo.” (ARCARY, Valério. “Um reformismo quase sem reformas - uma crítica marxista do governo Lula, em defesa da revolução brasileira”. São Paulo: Sundermann, 2014, p. 18).

(https://esquerdaonline.com.br/2019/07/15/como-chegamos-a-era-dos-bolsonauros/)

5. A COMÉDIA INTELECTUAL DAS IDEIAS FORA DO LUGAR

“A justiça? Que justiça? O que é a justiça? A justiça é um certo número de homens como os senhores e eu, que, na maioria das vezes, escapam dessa justiça graças à hipocrisia ou à astúcia. (...) Para o diabo todos os conselhos! E para que continuar com todos esses truques do tribunal? Para que continue a representar a grande comédia da justiça. (...) Pouco me importam os seus tribunais, seus juízes de opereta, seus promotores marionetes, suas prisões vingativas.” (ARRABAL, Fernando. “O Arquiteto e o Imperador da Assíria”. São Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 95).

Para encerrar à altura da suprema baixeza, com toda a “sarcáustica” pompa/bomba protocolar metafórico-dramatúrgica, vale a pena ouvir de novo - até parece reprise novelesca, né? - a dona-diretora do “Balcão” de Genet: “Vestir-se... ah, as fantasias! Redistribuir os papéis... assumir o meu... preparar o de vocês... juízes (...)”. Bem “abaixo do nível de toda a crítica” - veja bem - do “18 de Brumário” de Marx: sequer “a mesma caricatura se repete nas circunstâncias” do tal ensaio da farsa golpista do 8 de janeiro… A exposição do STF parece ter deixado mais exposta, paradoxalmente, a responsabilidade da Suprema Corte, na glosa irônica de Trotsky, uma vez que “as asserções entusiásticas feitas a propósito” - era uma vez - da inabalável resistência democrática togada “ressoam como uma comédia bem lastimável, em que ninguém” deveria, logo, acreditar… Afinal, a autocrítica do descarado coro uníssono legislativo-judiciário - como diria o “Rei Lear” - seria mesmo um mero detalhe absolutamente dispensável: “Não há ninguém culpado, ninguém - digo, ninguém. Podes acreditar em mim, amigo, tenho o poder para lacrar os lábios do acusador. Arranja olhos de vidro e, como um político rasteiro, finge ver aquilo que não vês”. Para não dizer que não falei do intertítulo do quinto e último ato dessa tragicomédia dramático-burlesca institucional - veja bem - bem “abaixo do nível da história” (quem falou e disse foi Marx), eis o que Roberto Schwarz (quem falou e disse “ao vencedor, as batatas” foi o iconoclasta narrador machadiano), enfim, falou e disse: “Sumariamente está montada uma comédia ideológica (...). Nestas condições, quem acredita na justificação? (...) Neste contexto, portanto, as ideologias não descrevem sequer falsamente a realidade (...). Sua regra é outra, diversa da que denominam (...), em detrimento de sua intenção cognitiva e de sistema. (...) Neste sentido, dizemos que o teste da realidade e da coerência não parecia, aqui, decisivo (...).” (SCHWARZ, Roberto. "As ideias fora do lugar". São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014, pp. 48 e 53).

O Julgamento de Cambises, por Gerard David / Wiki Commons

ANEXO

Para não dizer que não falei do hipócrita “Rei da Vela” oswaldiano para falar desta “comédia antiga”, pois, com “todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós”, “todos os resíduos do velho teatro”, para não falar que não “digo que estamos num país atrasado”, sob o lema “Desordem e Regresso” e - é claro! - “sob o silêncio comprado dos jornais e a cegueira da justiça da [sua] classe”, bem como que “Abelardo II” falou e disse que, se “a burguesia só produziu um teatro da classe” e, de fato, “hoje evoluímos” e “chegamos à espinafração”, convém conferir - numerados em pateticamente irônico “cesarismo” romano - os respectivos notáveis depoimentos a seguir, então, dos 11 ministros do STF sobre o tal infausto farsesco ensaio golpista de “8 de janeiro de 2023”:

I - Ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF:

“O 8 de janeiro mostrou que o desrespeito continuado às instituições, a desinformação e as acusações falsas e irresponsáveis de fraudes eleitorais inexistentes podem levar a comportamentos criminosos gravíssimos. Porém, mostrou a capacidade de as instituições reagirem e fazerem prevalecer o Estado de Direito e a vontade popular. A lição é que atos criminosos como esses trazem consequências e que não é possível minimizar ou relativizar o que aconteceu. As punições estão vindo e cumprindo um dos papéis do Direito Penal, que é dissuadir as pessoas de voltarem a agir assim no futuro. Embora possa parecer paradoxal, a democracia brasileira saiu fortalecida do episódio.”

II - Ministro Edson Fachin, vice-presidente do STF:

“Não esqueceremos o que aconteceu nesse dia, mas a melhor resposta está no trabalho permanente deste Tribunal: aos que foram às vias de fato, o processo; aos que mentiram, a verdade; e aos que só veem as próprias razões, o convívio com a diferença. Pelo respeito ao devido processo, o Supremo Tribunal Federal honra o Estado de Direito democrático legado pela Assembleia Constituinte.”

III - Ministro Gilmar Mendes:

“Um ano após os atentados do dia 8 de janeiro, podemos celebrar a solidez das nossas instituições. Nós poderíamos estar em algum lugar lamentando a história da nossa derrocada, mas estamos aqui, graças a todo um sistema institucional, contando como a democracia sobreviveu e sobreviveu bem no Brasil.”

IV - Ministra Cármen Lúcia:

“8 de janeiro há de ser uma cicatriz a lembrar a ferida provocada pela lesão à democracia, que não há de se permitir que se repita.”

V - Ministro Dias Toffoli:

“A brutalidade dos ataques daquele 8 de janeiro não foi capaz de abalar a democracia. O repúdio da sociedade e a rápida resposta das instituições demonstram que em nosso país não há espaço para atos que atentam contra o Estado Democrático de Direito.”

VI - Ministro Luiz Fux:

“A democracia restou inabalada e fez-se presente na punição exemplar contra aqueles que atentaram contra esse ideário maior da Constituição Federal: o Regime Democrático!”

VII - Ministro Alexandre de Moraes:

“As respostas das instituições atacadas mostram a fortaleza institucional do Brasil. A democracia não está em jogo, ela saiu fortalecida. As instituições demonstraram ao longo deste ano que não vão tolerar qualquer agressão à democracia, qualquer agressão ao Estado de Direito. Aqueles que tiverem responsabilidade serão condenados na medida da sua culpabilidade.”

VIII - Ministro Nunes Marques:

“A reconstrução rápida das sedes dos Três Poderes trouxe simbolismo maior ao lamentável episódio, revelando altivez e prontidão das autoridades para responder a quaisquer atentados contra o Estado de Direito. Mais que isso, serviu para restabelecer a confiança da sociedade, guardar a imagem internacional do país e assegurar a responsabilização dos criminosos. Todo povo carrega, em sua cultura e história, as suas assombrações, mas não se constrói uma sociedade saudável sem o enfrentamento adequado daquilo que se quer esquecer”.

IX - Ministro André Mendonça:

“Ao invés de ter ranhuras em função do dia 8 de janeiro, a democracia saiu mais forte. Eventos como esse, independentemente de perspectivas e visões de mundo das mais distintas, não podem ser legitimados e nem devem ser esquecidos. Nós crescemos convivendo com as diferenças, que pressupõem respeito, capacidade de ouvir e de dialogar. Nenhuma divergência justifica o ato de violência.”

X - Ministro Cristiano Zanin:

“Após um ano dos ataques vis contra a democracia, tenho plena convicção de que as instituições estão mais fortes e, principalmente, unidas. É preciso sempre revisitar o dia 8 de janeiro de 2023 para que momentos como aqueles não voltem a manchar a história do Brasil.”

XI - Ministra Rosa Weber (aposentada):

"O ataque à democracia constitucional brasileira em 8 de janeiro de 2023, com a abominável invasão da sede dos Três Poderes da República e devastação do patrimônio público, inédito quanto à Suprema Corte do país em seus quase duzentos anos de existência, há de ser sempre lembrado para que nunca se repita! E deixa como lição a necessidade de incessante cultivo dos valores democráticos e da defesa intransigente do Estado Democrático de Direito.”

OBS: Este artigo é dedicado a Mateus Forli e Felipe Demier.

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