A falsa cegueira do Estado de Trump (e de um certo progressismo)

A falsa cegueira do Estado de Trump (e de um certo progressismo)
George Grosz (1893-1959), Alemanha, um conto de inverno, 1918. Pintado um mês após "Gefährliche Straße", seu paradeiro atual é desconhecido. Foto: Akademie der Künste, Berlim, Kunstsammlung. Obra de arte: © Estate of George Grosz, Princeton, N.J. / DACS 2020.

Publicado por Felipe Demier e Douglas Alves em 22 de janeiro de 2025.

Há algo de paradoxal, e talvez até mesmo de contraditório, no discurso de Trump quando ele diz que os EUA serão "cegos" em relação à cor, e que o critério social no país deverá ser o "mérito". A princípio, esta bandeira é ideologicamente republicana (não no sentido do Partido Republicano) e, até certo ponto - e só até certo ponto -, democrática (não no sentido do Partido Democrata). Mas o princípio, nesse caso, é só mesmo um princípio, o final é bem diferente, e a falsidade resta evidente.

Como diversos autores marxistas estudiosos do Estado elucidaram, a transição para o moderno Estado capitalista veio acompanhada de uma ideologia pretensamente universalista, que se materializou na exigência pela abertura do aparelho estatal a todos os estratos sociais, a despeito de sua origem social, racial, religiosa etc. Esse universalismo surge como oposição aos traços particularistas (feudais-oligárquicos) dos Estados pré-capitalistas, dirigidos por uma burocracia de origem estamental-nobiliárquica.

Evidentemente, como o jovem Marx argumentou desde o seu "Sobre a questão judaica", esse universalismo (identificado como “emancipação política”), embora superior e um avanço em relação ao "Estado cristão" medieval, não seria senão um universalismo abstrato, correspondente à nova forma de exploração própria do capitalismo .

Nesse sentido, o judeu (ou o negro, a mulher, a pessoa trans etc.) perderiam a particularidade que os diferencia, uma vez que agora todos seriam, do ponto de vista do pertencimento político, cidadãos. A sociedade se livraria da "feudalidade", isto é, das distinções políticas institucionalizadas por nascimento, religião etc., e seus respectivos privilégios. Tornados todos iguais e livres aos olhos do Estado e da lei, os cidadãos (não mais politicamente vassalos, suseranos, servos, escravos, judeus etc.) poderiam entregar-se às relações puramente econômicas, e as diferenças sociais seriam enfim explicadas e justificadas pela ideologia do mérito. Ou seja, as distinções foram formalmente eliminadas da esfera Estatal e pública com a instituição da cidadania política baseada na liberdade e na igualdade formais, para se realizarem de modo cada vez mais intenso na esfera privada, definida pelas relações de classe, onde o sucesso ou fracasso de cada qual é um problema individual e, portanto, não político.

O negro, a mulher e o judeu convertiam-se em despossuídos ou proprietários, e suas identidades pretéritas eram agora subsumidas numa cidadania formal e abstrata. Se emancipavam politicamente, já que deixavam de existir marcados como tais na dimensão jurídica-política, tendo sua existência social definida sobretudo pela sua relação (não política, e sim econômica) com os meios de produção (agora completamente privatizados), tornando-se, então, proprietário e trabalhadores, ricos e pobres, ou ainda “vencedores e fracassados” (numa linguagem “coach”).

Obviamente - frisamos - Marx via essa emancipação política como um avanço em relação ao momento histórico anterior. Porém, "essa tal liberdade" dos ex-escravos e ex-servos era paradoxal, já que desprovidos de terra e de meios de trabalho, eles seriam (e são) obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. Daí a necessidade, para Marx, desta emancipação meramente política vir a ser superada (e não simplesmente rejeitada) pela emancipação humana, a partir do fim da propriedade privada dos meios de produção e, com isso, o fim do fundamento da particularidade-mor que segue dividindo em partes (hierárquicas, é preciso reforçar) a humanidade.

Compreendendo que a acumulação capitalista se vale das opressões (tratadas como não políticas) de gênero, raça, religião etc., muitos ativistas e intelectuais críticos passaram a defender o reconhecimento político das identidades (na medida em que o Estado universalista as havia formalmente suprimido). Buscava-se, assim, a afirmação política das identidades como um meio de combater a falácia do universalismo abstrato e da ideologia meritocrática, que de fato impediam uma universalização "real" do Estado (o melhor exemplo é o "particularismo" das políticas de cotas que, dialeticamente, contribuiu para uma maior universalização do acesso às universidades públicas).

O limite desse posicionamento é que, sem questionar o Estado capitalista e a propriedade privada dos meios de produção, as políticas de reconhecimento pretendem atribuir um caráter mais propriamente universal às instituições, ou seja, tornando-as mais “representativas” a partir das identidades que passam a incorporar. Mas esse universalismo continua abstrato, claro, pois o proletário e o burguês seguem inexistentes como tais na lei, na medida em que continuam sendo meros cidadãos. O fato de sua diversidade (de gênero, raça, sexualidade, religião etc.) estar formalmente representada nessa instituição pretensamente universal que é o Estado capitalista só torna tal representatividade igualmente formal, uma vez que fora da esfera pública e política as desigualdades reais seguem se aprofundando e, para tal, seguem se servindo das diferenças que estão na base da opressão.

Ocorre que uma pequena parte desses intelectuais e ativistas tomou essa politização das identidades como um momento, digamos, tático, para estender a emancipação para além da esfera política (a tal da "emancipação humana"). Isso significaria que o proletariado - enquanto a síntese do diverso (e portanto das identidades) e a unidade de todos os despossuídos - aboliria a sociedade capitalista, enviando a figura do burguês, assim como a do próprio proletário, ao museu da história, onde encontrariam o escravo, o servo etc.

A enorme maioria daqueles militantes e ativistas, no entanto, transformou a tática em estratégia, centrando sua política na afirmação, fixação e estagnação das identidades, ou seja, adotando uma postura de corporativismo identitário. Nada de universal, nada de proletariado, nada de abolição do capital. O capitalismo deveria continuar vigente, mas agora reconhecendo politicamente as múltiplas e fragmentadas identidades. Desse modo, se os primeiros, minoritários, desejavam executar a programática contida em "Sobre a questão judaica", os últimos, hegemônicos, parecem querer uma espécie de retorno hipercapitalista e pós-moderno à situação do "Estado cristão", só que agora com todas as "religiões" (sob a forma de identidades essencializadas) afirmadas, representadas e igualadas no "céu político".

É nesse sentido o paradoxo, a contradição e, ao fim e a cabo, a falsidade do discurso de Trump essa semana: ao falar que a justiça deve ser cega à cor, ele na verdade diz que, na forma, negros, brancos, indígenas, asiáticos e latinos devam seguir iguais, como cidadãos, mas que, na vida social e econômica, e sobretudo policial, todos eles devem seguir recebendo tratamento diferenciado, sendo os brancos vistos como a identidade superior e dominante. A cegueira, portanto, seria apenas em um dos olhos. Se, de fato, o Estado norte-americano fosse real e completamente cego quanto à cor, não haveria tantos Georges Floyds mortos e encarcerados, e nem tantos pares alaranjados de Trump no Judiciário e nos postos-chave do país. Já aquela ala majoritária dos intelectuais e ativistas aos quais nos referimos (cada vez mais presente nos meios de comunicação tradicionais, aliás) também não quer a verdadeira cegueira do Estado capitalista, e sim que tudo seja afirmado, visibilizado e bem representado neste Estado, não com o objetivo de superá-lo, mas sim de aperfeiçoá-lo dentro da ordem geradora de desigualdade que lhe dá sentido. Dito de outro modo, as mulheres negras podem continuar a serem superexploradas no mercado de trabalho capitalista e Israel pode seguir eliminando fisicamente os palestinos, mas desde que tenhamos, no comando de tudo isso, um Obama ou uma Kamala. De olhos bem abertos para as identidades, e de olhos bem fechados pra todos os explorados e oprimidos da humanidade.

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