A vanguarda performática da retaguarda apática: esquerda socialista, governismo e identitarismo
Publicado por Felipe Demier, em 31 de outubro de 2024.
A "correlação de forças é muito desfavorável", a "extrema-direita é muito forte" e as derrotas são produtos da "realidade". Acerca desta, não podemos fazer muito, salvo esperar que ela, pelo sua própria evolução, melhore; até lá, o que podemos mesmo fazer é, em base a minha subjetividade e do que ela concebe como o "dever ser", prescrever normas e comportamentos que todos deveriam adotar, sobretudo no campo linguístico.
Um objetivismo contemplativo acerca de uma realidade cujas leis próprias eu posso conhecer (mas sobre as quais não posso atuar) se combina, assim, a um subjetivismo ético-moral justificado pela incognoscibilidade última da "coisa em si" ("Quem vai dizer que a questão da luta de classes é a mais importante"?!) Assim, parecem ter lugar na esquerda socialista as tais antinomias da filosofia burguesa, que teriam tido seu ápice em Kant (segundo o jovem Lukács).
Desse modo, a relação caudatária da esquerda socialista com o governo de colaboração de classes se articula muito bem com o identitarismo parlamentarista e "desafiador", a moderação se une tranquilamente à lacração. "Não posso exigir e nem cobrar muito do governo, sobretudo na área econômica, pois senão a extrema-direita volta ao poder", mas enquanto isso eu devo invocar que os "corpos não hegemônicos" exaltem suas "linguagens" e suas "novas epistemes" (incluindo a educação pelo cu), de modo a orientar a formação da militância. Se lá sou retaguarda, aqui sou vanguarda, ou, se quisermos, a vanguarda performática de uma retaguarda apática.
Inerte, porque impossibilitado de fazer qualquer coisa onde tudo deveria ser feito, eu devo fazer tudo onde nada do que eu faça vai realmente mudar alguma coisa. Me rendo à realidade no que ela tem de fundamental, e a "desafio" onde ela permite ser "desafiada", eis a lógica que parece embasar parte da esquerda socialista atual.
Não à toa, são justamente os maiores defensores de uma postura governista no interior da esquerda socialista os mesmos que cada vez mais se apoiam em mandatos de perfil identitarista (enquanto se apressam em dizer que sequer existe identitarismo, e, valendo-se do argumento falso e identitarista por excelência, acusam os críticos marxistas do identitarismo - e que aqui não se incluem os Jessés da vida, por óbvio - de negarem a importância da luta contra as opressões).
Para os que creem que será o governo Lula a nos livrar do neofascismo, não resta muito a fazer do que disputá-lo por dentro. É coerente. Mas daqui a dois anos não vai adiantar compartilhar textos que culpam a "realidade" com a legenda "É sobre isso".