Anti-intelectualismo na esquerda

Anti-intelectualismo na esquerda
René Magritte, Os amantes (1928).

Negacionismo e veto ao escrutínio crítico sobre as próprias crenças não ocorrem só na direita

Publicado por Luís Felipe Miguel em 03 de agosto de 2024.

No recente encontro da Compós, em Niterói, eu ia apresentar um trabalho que discutia o discurso contra a ciência e contra o capital cultural presente em certos setores da esquerda. Mas fui vitimado por uma intoxicação alimentar e não rolou.

Os relatores do meu paper ficaram chocados com as críticas. Fui praticamente jogado no saco da extrema-direita. O negacionismo da esquerda foi minimizado como apenas “irritante”. (Para quem tiver curiosidade, o trabalho, o relato e minha tréplica estão disponíveis aqui: https://tinyurl.com/compos2024).

Não creio. A esquerda negacionista é talvez irrelevante, como força política. Mas prejudica a construção de um projeto que seja plural e emancipatório – e por isso deve ser debatido (e combatido).

O anti-intelectualismo pode ser definido sumariamente como a recusa ao conhecimento especializado e a hostilidade ao pensamento complexo, em nome da transparência do vivido e da sensibilidade da “pessoa comum”.

Seu grande efeito é negar complexidade ao real.

Não é um fenômeno novo, mas se tornou marca da nova extrema-direita. Seu discurso “elite contra o povo” costuma livrar a cara das elites econômicas e mesmo de grande parte das elites políticas, então sobra para a elite intelectual. O negacionismo da ciência e da história é um dos pilares de seu discurso. O elemento transgressor, tão presente nas obras artísticas, aparece como afronta aos valores e hierarquias tradicionais.

Mas a recusa do debate, a negação do argumento científico ou a crença na superioridade do conhecimento obtido por meio da experiência direta não são exclusividades da direita.

A versão à esquerda do anti-intelectualismo assume a forma da crença numa grande teoria conspiratória em que qualquer informação adversa é enquadrada imediatamente como “manipulação do imperialismo”. A Coreia do Norte é o paraíso terrestre, a China é o socialismo do futuro, a Venezuela é uma democracia avançada – e ai de quem contestar.

Ou, então, da valorização de vozes subalternas, o que se inspira em percepções críticas sobre as formas dominantes de produção do conhecimento e sobre a universalização espúria de um ponto de vista europeu, branco e masculino, mas se banalizou – e ganhou corpo nas batalhas digitais – como uma série de exclusivismos e exclusões organizada em torno da noção fluida de “lugar de fala”.

De uma denúncia de certo idealismo racionalista, que postula uma Razão descarnada capaz de interpretar o mundo permanecendo fora dele, chega-se à compreensão de que estamos presos em nossas experiências e somos incapazes de trocas verdadeiras com os outros.

Seria possível ver aí uma reflexão sobre a condição humana essencial, na esteira de Jean-Jacques Rousseau, que observava que entre as ideias e os sentimentos de uma pessoa e outra pessoa se interpõe, sempre, a linguagem. Essa leitura mais generosa fica interditada porque o foco não é a solidão originária de toda consciência humana, mas o grupo. Somos plenamente transparentes dentro do grupo de pertencimento, definido em geral por raça ou sexo e gênero, mas completamente opacos para os estranhos a ele.

O que se coloca, então, é a absoluta impossibilidade de qualquer diálogo fora do grupo. Aquilo que de início remetia a construções sociais opressivas, que estruturavam vivências diferenciadas para integrantes de diferentes grupos, ganha ares místicos com a crescente popularidade de noções como “ancestralidade” ou o apelo a um “feminino” inerentemente conectado com o mundo natural, na esteira de Luce Irigaray e outras pensadoras.

Ainda que se volte a aceitar que a questão é estrutural, restam alguns pressupostos questionáveis. O primeiro é que a experiência do grupo é tanto perfeitamente compartilhada com os outros integrantes quanto completamente incomunicável aos estranhos.

O segundo é a presunção de que o integrante do grupo, por sua própria vivência, tem clarividência sobre sua situação.

O terceiro é que qualquer olhar externo sobre a vivência ou sobre os mecanismos de opressão sofridos por aquele grupo é sempre agressivo, ofensivo, ameaçador ou, no mínimo, inconveniente e inútil.

Juntos, eles impõem uma impossibilidade de diálogo. Aos externos, isto é, aqueles que não participam do grupo, a única opção possível é uma solidariedade subserviente e a reafirmação permanente de sua própria culpa pessoal.

O primeiro pressuposto (a unicidade da experiência no grupo) combina-se de forma tensa com a noção de “interseccionalidade”, no entanto mobilizada pelas mesmas vozes. A teórica indiana Gayatri Spivak falou, celebremente, de um “essencialismo estratégico” que os subalternos deveriam mobilizar para avançar pautas vinculadas às suas identidades. Mais tarde, ela mesma lamentou que a faceta estratégica estivesse sendo deixada de lado, em favor de um identitarismo essencialista tout court.

Talvez se possa dizer que estratégico se tornou o recurso à interseccionalidade, isto é, ao fato de que múltiplas opressões sobrepostas geram posições sociais distintas, lembrado ou esquecido de acordo com as conveniências do momento.

O segundo pressuposto (o conhecimento nasce da vivência) é a afirmação do privilégio epistêmico dos dominados. Não se trata mais, como no uso inicial da noção de “lugar de fala”, que leva a formulações como o conceito de perspectiva social desenvolvido por Iris Marion Young, de lembrar que todo discurso sobre o mundo é situado e que, portanto, as visões que circulam como universais são na verdade vinculadas a posições dominantes que têm condição de se apresentar socialmente como não situadas.

Em vez disso, desliza-se para um entendimento ingênuo e francamente indefensável de que o integrante do grupo dominado, simplesmente por experienciar a dominação, entende-a melhor do que qualquer outro. Isto significa jogar na lata de lixo toda a percepção, presente no pensamento crítico, de que vivemos em um mundo social marcado pela ideologia e pela alienação.

De Marx e Engels indicando que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante a Simone de Beauvoir escrevendo que na sociedade patriarcal as mulheres são obrigadas a significar suas vidas por meio de consciências alheias, sempre há compreensão de que a consciência crítica não está disponível a não ser por meio de um trabalho de desconstrução de discursos dominantes e de produção coletiva de novas percepções.

Por fim, o terceiro pressuposto (o outro é necessariamente nefasto) garante a inviolabilidade das percepções espontâneas dos integrantes do grupo. Nada que venha de fora pode merecer atenção, muito menos desestabilizar as convicções já arraigadas.

Isto alimenta o anticientificismo que contamina boa parte destas percepções; um anticientificismo também estratégico, pois a ciência pode ser mobilizada em defesa das vacinas contra o negacionismo bolsonarista ou trumpista, mas depois rechaçada como bitolada e limitada quando se trata de defender a homeopatia ou a astrologia. Ou dados de pesquisas são ostentados quando reforçam as crenças do grupo, mas refutadas in limine quanto as contradizem ou introduzem maior complexidade às questões.

Um exemplo conhecido: repete-se à exaustão a informação de que a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil não excede 35 anos, estimativa sem fonte e que muito provavelmente se refere a estudo que calculou a média de idade de uma amostra de pessoas trans assassinadas.

Reconhecer que esse dado é falso leva a acusações de transfobia. Mas o que seria melhor para estabelecer políticas efetivas de proteção à integridade física e à saúde de um determinado grupo: números lacradores ou informações fidedignas?

A crítica à ciência ocidental não foca apenas em seus efeitos nefastos, como a degradação ambiental, a produção de armas com cada vez maior potencial destruidor ou a crescente capacidade de controle de governos e corporações sobre as populações – questões que se ligam ao ambiente social em que o fazer científico se dá e aos interesses a que ele serve.

A crítica se dirige aos fundamentos da ciência como instrumento de leitura do mundo, negando, por exemplo, o próprio método científico. Os procedimentos de validação da observação, controle de vieses e generalização são acusados de positivistas e eurocêntricos, o que já trai a ideia de que nada pode ser alçado à condição de patrimônio universal da humanidade: todos estamos presos em nossas próprias tradições tribais.

Assim, todo o conhecimento científico é relativizado em favor da valorização de sabedorias tradicionais com inegável elemento místico. A estrita divisão entre o fazer científico e o pensamento mitológico, que foi fundamental para o avanço da ciência a partir da Idade Moderna, é rechaçada por um discurso que se quer “decolonial” e emancipatório.

Essa recusa do método científico não está baseada em outra coisa que não um relativismo extremado, que nega qualquer possibilidade de avanço na comprovação ou falsificação de visões do mundo a partir da produção de dados reconhecíveis como legítimos por todos. É fácil apontar os excessos da chamada “política identitária”. É fácil condená-la por suas manifestações mais rasas e estridentes nas mídias sociais – mas de que vertente política não poderíamos dizer o mesmo? Só que isso não pode justificar o retorno a uma universalidade abstrata, determinada seja pela clivagem de classe, como em tradições da esquerda, seja pelos direitos de cidadania, como no liberalismo.

Com excesso ou sem excesso, o reconhecimento da pluralidade de eixos de opressão na sociedade, sem hierarquização possível a priori, nos coloca diante de uma realidade complexa, para a qual nossa imaginação política ainda não consegue dar resposta adequada, mas que não é ignorando que vai desaparecer. Se nossa meta é criar um mundo mais justo, temos que dar conta da multiplicidade da injustiça no mundo.

A atenção ao lugar de fala, quando ele é bem compreendido, fornece meios para uma leitura menos ingênua de todos os discursos, para amparar a exigência por um efetivo pluralismo de vozes no debate público e, ainda, para garantir aos integrantes do próprio grupo a palavra final sobre a pauta de reivindicações e a estratégia política a ser adotada.

Mas se o objetivo não é a mera autoexpressão ou a produção de reservas de mercado nas disputas discursivas, e sim a superação dos padrões de dominação social, então a busca de aderência à realidade factual, com os melhores instrumentos de que pudermos dispor, não pode ser deixada de lado.

O problema é que este debate continua sendo interditado em boa parte da esquerda. Isso nos impede de avançar.

*

Publicado originalmente em: https://www.instagram.com/p/C-NJx7mOPwS/.

Receba no seu e-mail