Cem anos sem Lênin
Publicado por Felipe Demier, em 13 de março de 2024.
“Como é que eu posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo no meio do fel do desespero. Ao que este mundo é muito misturado...[...] Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe” (Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas).
Um pouco mais do que meia dúzia de intelectuais russos, morando quase todos na mesma casa nos exílios de Londres e Zurique, e discutindo como dirigir com vistas à revolução a luta dos distantes trabalhadores da imensa e atrasada terra dos czares. Um pequeno jornal, profundamente teórico e programático, era o meio precípuo para esta tarefa, e ele tinha que adentrar clandestinamente no território russo e chegar às mãos de células de operários e operárias que desempenhavam um tanto quanto separadamente suas lutas cotidianas. A ideia dos editores do jornal – os quais viviam de contribuições da militância, expropriações armadas, doações de partidos operários europeus e de pequenos trabalhos avulsos (da redação de artigos à produção e venda de manteiga artesanal- sem lactose?) – era, sobretudo, unificar as lutas operárias na Rússia e imprimir-lhes um sentido conscientemente socialista. Parecia um plano mirabolante, e era. Parecia ter tudo para dar errado, mas não deu.
As variegadas razões para o sucesso do marxismo revolucionário russo constituem um interessante objeto, e os historiadores, profissionais ou não, ainda se detém em investigá-lo e compreendê-lo. Pode-se afirmar, sem dúvida, que entre tais razões está o ímpeto de Lênin, cientificamente embasado, em não se deixar levar pelos caminhos que pareciam mais fáceis, não optar pelas linhas de menor resistência, como se costuma dizer. A análise dialética da realidade que permite deslindar nesta as possibilidades contidas enquanto “negação”, a procura, prática e teórica, por esta “negatividade”, na acepção hegeliana do termo, marcaram a trajetória política do leninismo – com Lênin, claro. Essa busca, na realidade, das possibilidades para uma intervenção crítica era indissociável da compreensão de que essa mesma realidade é, também, um constructo da ação humana, ou seja, diante de certas condições postas, dever-se-ia intervir de determinada forma com vistas a fazer desenvolver a negatividade do real, fomentando, assim, as próprias condições adequadas para uma seguinte intervenção crítica, e assim sucessivamente. Oposto ao voluntarismo de tipo blanquista, assim como ao objetivismo de jaez reformista, a práxis de Lênin definia-se por uma intervenção na realidade que procurasse criar as condições de sua própria intervenção. Observando as condições reais do relógio, a práxis deveria fazer a hora, e não esperar acontecer, como na canção soixante-huitard de Vandré.
Assim, nada mais estranho à práxis de Lênin do que o conformismo objetivista, então a linha predominante entre os dirigentes e intelectuais do movimento operário marxista da época – e de hoje também, embora seja difícil falar ainda de um “movimento operário” propriamente dito. Nada mais distante da política de Lênin do que, sob o argumento, realista, de que as condições e a correlação de forças se encontravam por demais adversas aos trabalhadores, a postulação de que seria necessário um longo período de acúmulo de forças, durante o qual as críticas ao reformismo em todos os seus matizes deveriam ser amainadas em nome de uma unidade defensiva qualquer. Nada mais oposto ao marxismo de Lênin do que um certo etapismo da consciência, no qual uma postura acrítica face aos adversários (não marxistas) no interior do movimento operário seria necessária para que, num momento posterior, em uma correlação de forças mais favorável, se pudesse, aí sim, passar à crítica revolucionária a tais adversários com vistas à conquista do poder.
Do contrário, Lênin, como antecipamos, considerava que a crítica radical da realidade era condição necessária para o desenvolvimento das condições, objetivas e subjetivas, necessárias à transformação dessa mesma realidade. Aliás, não seria equivocado dizer que o pensamento de Lênin se mostrou mais radicalmente crítico justamente quando a correlação de forças se mostrava mais adversa, e precisamente por isso a crítica fazia-se ainda mais necessária – para orientar uma prática que pudesse alterar tal correlação de forças. Entre inúmeros exemplos, bastaria lembrarmos de que “O que fazer”, com sua cáustica crítica do conformismo sindicalista/economicista/reformista, foi redigido quando o movimento operário russo encontrava-se por demais marginalizado e sem audiência significativa entre as massas, incluindo a parte dela que empiricamente se batia contra os patrões e o czarismo nos primeiros anos da primeira década do século passado; da mesma forma, seu “Imperialismo”, cujas páginas contém, além de uma rica exposição das determinações da então nova (e “última”) fase do capitalismo, uma denúncia das forças majoritárias do marxismo europeu que haviam aderido à lógica da guerra capitalista em nome da defesa de suas respectivas “pátrias”, foi publicado quando os bolcheviques se encontravam totalmente na defensiva.
Em uma palavra: embora, em certos momentos por demais adversos aos trabalhadores, a revolução socialista pudesse ser por Lênin cogitada apenas para as próximas gerações, seria a atual que deveria, desde já, fazer com que, hegelianamente, a verdade do futuro começasse a ser feita no presente, e isso não seria possível sem, nas palavras do próprio revolucionário, falar a verdade às massas, porque a verdade seria sempre revolucionária.
Nos tempos do Brasil pós-Bolsonaro, quando a maioria da esquerda, um pouco assustada com o passado recente, e um tanto acomodada com um presente carente, invoca a apatia social e a impossibilidade de qualquer ação radical para ceder ao possibilismo institucional – acreditando estar nele o caminho para evitar o retorno de todo o mal – talvez venha bem a calhar lembrarmos um pouco do tal Ulianov que nos deixou há quase cem anos.
“Mas faz muito tempo...”, e estamos tão longe. E, talvez, tão perto.