Crise da democracia blindada e ascensão do neofascismo: algumas notas sobre a questão das ideologias

Crise da democracia blindada e ascensão do neofascismo: algumas notas sobre a questão das ideologias
Ismael Nery, Agonia (1931).

Publicado por Felipe Demier em 15 de outubro de 2024.

Nos marcos da crise capitalista aberta em 2008, tem lugar uma íntima associação entre a intensificação do neoliberalismo (ultraneoliberalismo) e o incremento da blindagem, de sabor bonapartista, nas democracias contemporâneas. Como sumariaremos de agora em diante, tal dinâmica das democracias blindadas acaba por, dialeticamente, engendrar as tendências antidemocráticas da extrema-direita neofascista. Dito de outro modo: ainda que a ala hegemônica da burguesia, financeirizada e cosmopolita, siga optando pela democracia liberal blindada como melhor forma de dominação político-social e, nesse sentido, se oponha ao neofascismo (que almeja erigir outro regime no lugar da democracia, por mais blindada que esta o seja), seu incontrolável afã em impor a austeridade e saltear os direitos das massas contribui, contraditoriamente, para o crescimento daquele. É mister buscarmos apreender as linhas de força determinantes desse contraditório processo que, a nosso ver, está na base da crise de hegemonia/crise da democracia contemporânea, discutidas por nós em artigo anterior neste espaço [1].

O avanço do ultraneoliberalismo, com sua programática de austeridade inclemente e contrarreformas sucessivas, provoca precarização das condições laborais, intensificação da exploração, degradação das condições socio-reprodutivas da força de trabalho, desagregação das comunidades de trabalhadores, adoecimento físico e mental dos mesmos, crise habitacional, desalento, desemprego, falta de perspectivas, tédio, insônia, ansiedade, epidemia de opioides, regressão estética e violência social, entre tantos outros malefícios à vida civilizada. Nas formações sociais periféricas e dependentes, profundamente desiguais e socialmente fraturadas, tais mazelas são exacerbadas de um modo exponencial, tendo lugar uma extrema deterioração das condições já mínimas de existência. A fome, a desnutrição, a inanição, a falta de água potável e saneamento básico, o crescimento de enfermidades provocado pela ausência de condições sanitárias, medicamentos, hábitos e cuidados elementares, o analfabetismo funcional, a indigência educacional, o rebaixamento intelectual, a miséria cultural, a lumpenização social, a decadência moral, a ignorância, a insalubridade, o vício, o obscurantismo, a insalubridade, os jogos de azar, as apostas, a agiotagem, o tráfico, as milícias, a criminalidade e, sobretudo a violência estatal e paraestatal no campo, nas médias e grandes cidades, conformam um tecido social já deveras esgarçado, puído, roto. A tais aspectos, somam-se, tanto no centro como na periferia (e mais intensamente nesta última), o avanço das expropriações de terra e dos recursos naturais, a devastação das florestas e poluição ambiental, a contaminação do ar e das águas, as catástrofes climáticas e, claro, as guerras civis e nacionais.

Ismael Nery, Composição surrealista (1929).

Diferentemente do que propugnam certas abordagens culturalistas e neofoucaultianas [2], são nestas deletérias condições sociais –  e não em um abstratamente genérico “ressentimento do homem branco” (que existe, claro, mas como um produto de tais condições, e não como um dado subjetivo apriorístico) – onde  podemos encontrar as raízes mais profundas, as determinações objetivas e precípuas para a crise de hegemonia burguesa atual no chamado “mundo ocidental”, cuja manifestação tópica, como dissemos, é a crise da democracia (liberal-blindada), com seu tecido celular em degeneração avançada, como pode ser evidenciado pelo cancro da extrema-direita neofascista.

Na última década aproximadamente, os regimes democráticos contemporâneos não demonstram pudores em intensificar sua blindagem antipopular, recorrendo casuisticamente a expedientes bonapartistas quando se trata de fazer valer os conspícuos e austeros interesses do grande capital. Para cortar direitos sociais e assegurar que o fundo público se torne um instrumento quase exclusivo de remuneração do rentismo, as democracias não se furtam de recorrer às suas reservas constitucionais mais antidemocráticas, evidenciando como medidas excepcionais podem facilmente ser invocadas como se ordinárias fossem, caso isso se mostre necessário à manutenção da ordem ultraneoliberal; as tais regras do jogo de que tanto gostam os politólogos liberais são, em nome dessas próprias regras, plácida e cinicamente subordinadas às suas exceções, de modo que a regra primeira do jogo, a satisfação do capital, seja respeitada [3]. Assim, não é de se estranhar que tais regimes sejam vistos pelas massas como o que de fato são, isto é, como um “sistema” cada vez mais impenetrável e cuja vigência concorre para a incontrolável e insuportável degradação das suas condições de vida, a qual ilustramos nos parágrafos acima. Aqui reside, portanto, um dos principais eixos condutores da crise da democracia (blindada). 

Quanto mais comprometida com o ultraneoliberalismo, mais blindada a democracia se torna. E vice versa: quanto mais blindada, melhor configurada para efetivar o programa ultraneoliberal a democracia se mostra. Cada vez mais ultraneoliberal e blindada, mais a democracia faz piorar as condições de existência dos setores subalternos, os quais passam a tomá-la como a forma política (o “sistema”) responsável por sua desgraça social, perpetuada com a regular alternância entre os principais partidos à frente da administração do Estado. A blindagem – vista como “a força do sistema” – garante que, independentemente de o governo de turno ser mais ou menos progressista, mais ou menos conservador, o contrarreformismo e a austeridade permaneçam intocáveis. 

Neste processo de bonapartização das democracias blindadas e surgimento do neofascismo a partir do desenvolvimento de suas próprias contradições, as ideologias jogam um papel fundamental. Vejamos isso sucintamente.

Se, conforme dissemos em escritos anteriores [4], o tal momento de verdade sempre foi ausente na ideologia que afirmava ser o neoliberalismo o caminho para o bem-estar do conjunto da população, isto é, se tal ideologia sempre foi puramente ideológica dado o sentido contrarreformista do projeto neoliberal (e, por conseguinte, sua dificuldade em oferecer algum substrato material significativo para a produção do consenso), sua vigência em tempos de crise e de ultraneoliberalismo acaba por fortalecer as forças abertamente antidemocráticas [5]. Ocorre, em termos práticos, isto é, na subjetividade das massas populares desorganizadas, uma cisão entre duas ideologias que desde a origem dos regimes democrático-blindados se encontravam irmanadas, a saber, a ideologia que apregoa a redução ou até mesmo o fim da intervenção keynesiana e social do Estado, e aquela que afirma ser a democracia liberal, por mais que blindada que esta se mostre, a melhor e, quiçá, a única forma de organização política da sociedade contemporânea. 

A defesa da privatização das tais funções sociais do Estado e da ausência deste em termos de planejamento econômico se tornou, para muitos, a defesa da privatização de todas as dimensões e esferas da vida dos indivíduos-consumidores [6]. Estes, instados pela própria ideologia neoliberal (difundida diuturnamente pelos aparelhos privados de hegemonia das democracias blindadas) a se comportarem como empreendedores, como empresários de si mesmos [7], passam, diante da crise social aguda, a agir como adversários mortais uns dos outros na arena do mercado, onde a guerra de todos contra todos seleciona, pelo mérito e esforço individual, aqueles que terão acesso a recursos como emprego, saúde, educação, moradia, lazer e mesmo sexo. 

Cada vez mais atomizados e egoístas, os sujeitos sociais se portam como mônadas concorrenciais para os quais a democracia não é senão um “sistema” que, em função de seus “políticos corruptos” que precisam de votos para permanecerem no poder, acaba desequilibrando em favor dos “acomodados” e que “não se esforçaram o suficiente” a hobbesiana e lancinante bellum omnia omnes que caracteriza a sociabilidade burguesa hodierna. Alegando não haver um lugar ao sol para todos nos atuais tempos de crise – e aqui, dissociada da ideologia democrático-liberal, a ideologia neoliberal encontra o seu hegeliano momento de verdade, pois, de fato, não há, nessa ordem, lugar para todos –, o neofascismo imputa à democracia a responsabilidade pelo fracasso dos que, mesmo com seu justo esforço e mérito próprio, ainda assim não obtiveram êxito social, pois estariam sendo prejudicados por um “sistema” que, para se reproduzir, protege certos grupos específicos e minorias (negros, imigrantes, migrantes, mulheres, indígenas etc.). 

A democracia liberal, enquanto sinônimo de interferência da política – ou simplesmente do “sistema” – na competição entre os indivíduos no mercado, é descrita como um conluio espúrio entre “pobres cuja pobreza é resultado da sua preguiça e conformismo” (e aqui o coach instagramer e o pastor neopentecostal trabalham juntos)  e políticos oportunistas (normalmente associados ao progressismo e à esquerda) que, por precisarem dos votos daqueles, os agraciam com políticas focalizadas e afirmativas (enquanto ajudariam a perpetuar a pobreza de onde advém seus “eleitores ignorantes”). Na gramática da política estadunidense contemporânea, tal noção vai aparecer como uma disputa entre os “makers” (“produtores”), aqueles que “trabalham duro, empreendem e pagam seus impostos ao Estado” (o que inclui tanto setores do trabalho – brancos – quanto do capital), e os “takers” (“aproveitadores”), que agrupariam os que viveriam às expensas do erário público via assistência social e outras políticas focais ofertadas pelo Estado e os “políticos do sistema” (liberais, no sentido norte-americano do termo) que as viabilizam [8]. No amálgama discursivo trumpista, as “elites” financeiras transnacionais (Wall Street), controladoras do “sistema” democrático, comungariam com professores universitários, defensores de direitos humanos, gestores de políticas públicas, feministas, intelectuais e artistas da indústria cultural um mesmo cosmopolitismo e valores imorais nefastos e opostos ao “trabalhador nacional” (tratados como “atrasados” e “tacanhos” [9]); a articulação política entre as primeiras e os últimos se daria principalmente no Partido Democrata, particularmente em suas alas mais progressistas. Novamente, notamos aqui como as mais reacionárias ideologias atuais se valem de elementos verdadeiros, e uma simples olhadela na candidatura de Kamala Harris (a última versão do “neoliberalismo progressista” de Fraser) é suficiente para asseverar isto [10].     

Ismael Nery, sem data.

É importante apontar como a própria ideologia da antipolítica, eixo cultural basilar das democracias blindadas desde seu nascedouro, converte-se, assim, em arsenal contra estas quando esgrimidas pelo neofascismo. Já analisamos alhures o caráter da ideologia antipolítica (em grande parte associada e derivada da ideologia anticorrupção [11]) enquanto um instrumento funcional à preservação da ordem neoliberal por meio de seu regime preferencial, a democracia blindada [12], e vimos também como, no caso particular brasileiro, ela foi acionada pelas forças hegemônicas do próprio regime, seja para, em uma manobra diversionista, derrotar autênticas mobilizações populares por reformas/direitos (Jornadas de Junho de 2013 [13]), seja para, à maneira golpista, substituir um governo por outro mais adequado à efetivação da agenda ultraneoliberal (impeachment de Dilma Rousseff em 2016 [14]) – o que, em ambos os casos, acabou por acirrar a blindagem da democracia. Contudo, o que queremos aqui destacar – e nos limitaremos simplesmente a postular a questão – é como essa mesma ideologia, em função do desenvolvimento predatório do ultraneoliberalismo, passou a, dialeticamente, servir, agora com um tônus mobilizatório permanente, como uma ideologia contrária à própria democracia blindada, isto é, ao próprio “sistema”. 

Como é amplamente conhecido, o discurso ideológico das democracias blindadas sempre afirmou o caráter meramente técnico das políticas neoliberais, isto é, sempre afirmou que tais políticas não seriam propriamente políticas, e sim normas, condutas e decisões inquestionáveis porquanto economicamente – o melhor seria contabilmenteracionais. A opção política pelo neoliberalismo não seria, portanto, uma opção política, uma escolha entre outras possibilidades de ação, e sim a simples manifestação da razão em termos de administração. Tratar-se-ia, assim, de técnica, de gestão. A política, então, passava a se limitar à escolha, pelo voto – e, portanto, pela via democrático-liberal –, dos melhores administradores neoliberais, ou seja, daqueles que tecnicamente saberiam o que deveria ser feito sem se deixar levar por questões...políticas! 

Assim, contraditoriamente, a política era afirmada na forma (eleições, democracia) enquanto era simultaneamente negada em seu conteúdo (disputa de projetos por diferentes setores sociais). O epíteto de “político” era, assim, reservado apenas aos críticos do dogma neoliberal, àqueles que se opunham à austeridade fiscal e às contrarreformas sociais. Qualquer mínima ponderação às políticas neoliberais era taxada como “demagógica”, “populista”, “política”. Lócus por excelência dos interesses vis e venais, dos acordos sem princípios, da corrupção e de toda forma de enriquecimento ilícito, eis a mais perfeita representação da política pela ideologia neoliberal. Se até o céu (e não o inferno) parecia ser neoliberal, a política eram os outros, parafraseando Sartre. Excluindo do debate público qualquer posição que ousasse questionar a verdade neoliberal, a democracia-liberal blindada desencadeou, ela mesma, a tal era da “pós-verdade” e, se hoje seus ideólogos se assustam com as fake news propagadas pelo neofascismo, deveriam se perguntar o quão fake não eram as suas próprias news que alardeavam que a privatização dos serviços sociais, o superávit primário das contas públicas, a flexibilização das relações laborais, as contrarreformas previdenciárias, a desregulamentação dos mercados, a integração econômica financeirizada entre os países (União Europeia), entre outras panaceias, promoveriam progressivamente o bem estar das amplas maiorias populares [15].

Evidentemente, tal ideologia conferiu às democracias blindadas um teor altamente tecnocrático, e fez da prática política no seu interior algo totalmente insípido, insosso e, sobretudo, desmobilizador. Ora, o que faz o neofascismo ao separar a ideologia neoliberal (fim do papel planejador e social do Estado, e mercantilização da vida) da ideologia democrático-liberal blindada (a alternância eleitoral entre grandes partidos comprometidos com a programática contrarreformista, e a vigência das liberdades civis) é precisamente elevar ao ápice a dimensão da antipolítica já contida nos regimes democrático-blindados existentes e, assim, substituir a apatia desmobilizadora e tecnocrática por uma mobilização permanente de massas voltada contra estes próprios regimes, vistos como um “sistema” comandado por “políticos”, imodificável por dentro (a blindagem) e responsável pela degradação constante das suas condições de vida. A antipolítica desmobilizadora instilada pela democracia blindada produziu, e vem cedendo lugar, à antipolítica mobilizadora das hostes neofascistas, e o fato de que quem pariu Mateus agora não o queira embalar, como é o caso dos jornalistas e cientistas políticos midiáticos, não muda em nada as coisas [16].

Não à toa, as lideranças neofascistas vão se apresentar – e não importa muito a veracidade do que dizem – como outsiders, como “não políticos”, como “antissistema”. O habitat de onde provêm é visto pela pequena-burguesia reacionária, e também pelas massas populares desorganizadas, como uma local diferente do “mundo da política”, em que as suas regras escusas não teriam lugar. Os demagogos neofascistas são tomados, portanto, como indivíduos que ascenderam pelo seu próprio esforço e mérito, não contaminados pelas práticas obscenas do “jogo político”, e que não precisam prostituir suas convicções em troca de votos.  

É assim que o magistrado, o militar e o empresário, incluindo aí os mais variados tipos de lumpens e arrivistas, são guindados à condição de bastiões da antipolítica, líderes antissistêmicos. Se o democrata neoliberal se dizia não um político, mas um gestor, agora o neofascista neoliberal, como seu adversário e sucessor, se diz não um político, um gestor, e sim um destruidor (“de tudo que está aí”) – a declaração de Bolsonaro, no início do seu mandato, de que ele e seu governo tinham que “desconstruir muita coisa” é lapidar [17]. Estas lideranças vão responsabilizar as instituições democrático-liberais, descritas como peças de um “sistema” viciado, corrupto e controlado pelas “elites” e “políticos esquerdistas”, pela crescente ruína, caos, desemprego, desamparo e violência que afligem a vida das massas populares.    

É possível notarmos, mais uma vez, como a reacionária ideologia neofascista encerra uma dimensão verdadeira, posto que inegavelmente as santificadas “instituições democráticas” nestas últimas décadas de acumulação capitalista neoliberal – e é justamente esta dimensão essencial, a do capitalismo neoliberal, que é omitida pela ideologia neofascista – efetivamente se comportaram como sólidos e herméticos (blindados) instrumentos políticos para a crescente piora da vida daqueles que vendem ou tentam vender sua força de trabalho. A partir de um momento de verdade, objetivo e visível, a pestífera ideologia neofascista vem logrando alastrar suas mais deslavadas falsidades entre as massas.

Neste dramático cenário, as forças da esquerda socialista – e o caso do Brasil é exemplar –, ao invés de atuarem nas lutas sociais, buscando combinar um posicionamento anticapitalista com a defesa das liberdades democráticas ameaçadas, acabam se posicionando cada vez mais como as defensoras das “instituições”, defensoras de uma democracia em abstrato, como as forças da ordem vigente, as forças do “sistema”, isto é, como as últimas fiadoras de uma democracia liberal blindada em crise que, por suas próprias contradições, vem pavimentando o caminho ao neofascismo. 


Notas

[1] DEMIER, Felipe. “Uma nota sobre a tal ‘crise da democracia’ contemporânea”. Cisma Crítica, 5 de junho de 2024 (https://www.cismacritica.com.br/uma-nota-sobre-a-tal-crise-da-democracia-contemporanea/). Acessado em 15 de outubro de 2024).

[2]  Uma crítica a tais concepções foi feita por nós em DEMIER, Felipe. “Neoliberalismo, democracia liberal e a “crítica crítica” neofoucaultiana: um breve comentário”. Cisma Crítica, 5 de novembro de 2021. Disponível em: <https://www.cismacritica.com.br/neoliberalismo-democracia-liberal-e-a-critica-critica-neofoucaultiana-um-breve-comentario/>. Acessado em 15 de outubro de 2024.

[3]  Entre muitos exemplos aqui pertinentes, lembramos das autonomias dos bancos centrais que, com suas taxas de juros decididas pelos seus tecnocratas a serviço do rentismo, fazem troça dos governos eleitos; da subordinação das economias do sul da Europa às diretrizes fiscais da União Europeia e que produziram contrarreformas nos serviços socais e demissões no funcionalismo público; de medidas que constitucionalizam por décadas o ajuste fiscal, como o caso do “teto de gastos” instituído no Brasil sob o governo, fruto de um golpe parlamentar, de Michel Temer  (vigente sob o governo Bolsonaro e que segue preservado, ainda que abrandado, sob o terceiro governo Lula por intermédio do chamado “arcabouço fiscal”); do uso de dispositivos bonapartistas da parte do Executivo, tanto para aprovar contrarreformas quando nem mesmo os já blindados parlamentos se mostram favoráveis a elas (como no caso do lei previdenciária decretada ano passado por Emmanuel Macron, sem aprovação da Assembleia Nacional, e, segundo fontes, rejeitada por três quartos dos franceses), quanto para simplesmente ignorar o resultado de pleitos eleitorais (como, novamente, foi o caso de Macron que, dispensando a tradição do tal jogo democrático no país, mandou às favas o resultado eleitoral deste ano – vitória da Nova Frente Popular – e, para evitar dividir o poder com um primeiro-ministro de esquerda – “coabitação” –, nomeou para o cargo seu aliado conservador Michel Barnier.

[4]  DEMIER, Felipe. Crônicas do caminho do caos. Democracia blindada, golpe e fascismo no Brasil atual. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019, p. 32; e ____. “Uma nota sobre a tal ‘crise da democracia’ contemporânea”. Op. cit.

[5]  “Os liberais que criticam o novo populismo [neofascismo, para nós] não percebem que a virulência popular é um sinal não do primitivismo das pessoas comuns, mas da fragilidade da própria ideologia liberal hegemônica, a qual, como não consegue mais ‘forjar consensos’, precisa recorrer a um funcionamento mais ‘primitivo’ da ideologia” (ZIZEK, S. “A tentação populista” in APPADURAI, A. [et. al]. A grande depressão. Um debate internacional sobre os novos populismos – e como enfrentá-los. São Paulo: Estação Liberdade, 2019, p. 302).

[6]  MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995.

[7]  DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[8]  BRAGA, Ruy. A angústia do precariado: trabalho e solidariedade no capitalismo racial. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 59; e KRISTOL, Irving. The neoconservative persuasion: selects essays, 1942-2009. New York: Basic, 2011, p. 136.

[9]  FRASER, N. “Neoliberalismo progressista versus populismo reacionário: a escolha de Hobson” in APPADURAI, A. [et. al]. A grande depressão. Um debate internacional sobre os novos populismos – e como enfrentá-los. São Paulo: Estação Liberdade, 2019, p. 82-83; e ZIZEK, S. “A tentação populista”. Op. cit., p. 306-307.  

[10]  FRASER, N. “Neoliberalismo progressista versus populismo reacionário: a escolha de Hobson”. Op. cit.

[11]  DEMIER, F. “O jacobinismo às avessas: anticorrupção e neoliberalismo na política brasileira atual” in ___. Crônicas do caminho do caos. Op. cit., p. 61-73.

[12]  DEMIER, F. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, p. 71-77.

[13]  “Contudo, desde as Jornadas de Junho, e sobretudo em função da opção burguesa de levar essa ideologia anticorrupção às ruas, isso é, de passá-la da letargia para a euforia, da prostração à mobilização, abriu-se a possibilidade para que os adeptos daquela segunda opção [os que, até então, subjetivados pela ideologia que afirmava serem as instituições da política todas corruptas, optavam por nada fazer], os apáticos e ‘descrentes com a política’, viessem a funcionar como base de massas para alternativas protobonapartistas, dirigidas por procuradores e juízes ‘apolíticos’ imbuídos em uma cruzada anticorrupção. O caminho para o bolsonarismo já estava sendo pavimentado” (DEMIER. F. “Houve, uma vez, dois Junhos: luta por direitos, anticorrupção e antipolítica em 2013” in FREITAS, C.; BARROS, D.; e DEMIER, F. Junho e os dez anos que abalaram o Brasil (2013-2023). São Paulo: Usina, 2023, p. 62-63).

[14]  DEMIER, F. Depois do Golpe...”. Op. cit., 71-77 e DEMIER, F. “Democracia e bonapartismo no Brasil pós-Golpe” in CISLAGHI, J. e ____. (orgs). O neofascismo no poder (ano I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro. Rio de Janeiro: Consequência, 2019, p. 117 -133.

[15]  “Certamente, na visão do internacionalismo neoliberal, que transformara a difusão de ilusões numa arte governamental democrática, a época da pós-verdade só teve início em 2016, o ano do referendo do Brexit e da destruição do clintonismo por Donald Trump. Só depois do fracasso da pós-democracia [democracia blindada, para nós] – o fim da paciência massiva com as ‘narrativas’ de uma globalização que nos Estados Unidos beneficiou apenas o 1% superior –, os administradores do ‘discurso’ dominante exigiram ‘controle obrigatório dos fatos’, lamentaram os ‘déficits’ causados, por um lado, pelas garras da economia nacional dirigida e, por outro, pelos cortes nacionais na educação, e exigiram ainda, como solução, testes de aptidão dos mais variados como precondição para o exercício do direito de voto” (STREECK, W. “O retorno dos reprimidos como o início do fim do capitalismo neoliberal” in APPADURAI, A. [et. al]. A grande depressão... Op. cit., p.259-260).

[16]  “Gestão, lei e tecnocracia no lugar de deliberação, contestação e partilha democráticas do poder: várias décadas dessa hostilidade multifacetada à vida política democrática geraram em populações neoliberalizadas, na melhor das hipóteses, uma desorientação generalizada quanto ao valor da democracia e, na pior, opróbrio em relação a ela. No entanto, dado que o político foi depreciado e atacado, mas não extinto, enquanto a própria democracia era minguada e desvalorizada, os poderes e energias políticos não democráticos e antidemocráticos em ordens neoliberalizadas inchavam em magnitude e intensidade. Foi desse modo que efeitos neoliberais tais como desigualdade e insegurança crescentes geraram populismos de direita [neofascismos, para nós] enraivecidos e políticos demagogos no poder que não condizem com os sonhos neoliberais de cidadãos pacíficos e ordeiros, economias desnacionalizadas, Estados enxutos e fortes, e instituições internacionais focadas em viabilizar a acumulação de capital e estabilizar a concorrência” (BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019, p. 71).

[17]  “’Nós temos é que descontruir muita coisa’, diz Bolsonaro durante jantar”. Valor econômico, 18 de março de 2019. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/18/nos-temos-e-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-durante-jantar.ghtml>. Acessado em 15 de março de 2024.

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