E eles ainda estão ali
Publicado por Felipe Demier em 26 de novembro de 2024.
Impossível assistir ao tristemente lindo "Ainda estou aqui" (de Walter Salles), que conta o drama da família do ex-deputado Rubens Paiva após sua captura e morte pelos agentes da ditadura militar, e não pensar que estes, assim como seus herdeiros políticos e sobretudo seus beneficiados econômicos, também ainda estão aqui. Aqui e ali.
Estão aqui, às claras, pressionando nos seus telejornais por mais e mais cortes nas áreas sociais, mais austeridade, mais privatizações e mais precarização do trabalho. E estão ali também, nas chacinas no litoral paulista, na militarização e privatizações de escolas, nadando de braçadas nas enchentes cadavéricas de Porto Alegre, nas caminhonetes do agro no centro-oeste e nas grilhagens da Amazônia incendiada e do Muzema micilianizado.
Estão aqui, dentro da lei, defendendo o tal "Estado Democrático de Direito", insistindo para que cada vez mais a "demos" esteja convenientemente longe da "kracia", e que milhões e milhões não tenham direito social algum. E estão ali, fora da lei, mas ainda à solta graças a ela e seus juízes e procuradores-gerais, de ontem e de hoje, e estão dizendo que com seus bivaques, bíblias e envenenamentos podem efetivar justamente estes objetivos, a austeridade total e a precarização laboral, mas sem os incômodos que a atual democracia liberal, por mais limitada e blindada que seja, ainda coloca para o grande capital.
Eles estão aqui, chantageando um governo fraco para que se renda de vez à banca e a um congresso do Centrão, com seus "covardes, assassinos, estupradores e ladrões", pois, caso não o faça, há sempre a chance dele ser impichado ou derrotado nas urnas por aqueles outros, os neofascistas tout court, eles também, "assassinos, covardes, estupradores e ladrões". E estes estão ali, à espreita, estacionados à frente de certas casas e apartamentos funcionais, com seus punhais, explosivos e covardia, muita covardia. Saudosistas de um tempo em que a luta de classes pôde ser decidida nas cadeiras do dragão e na ponta da praia, se propõem a restaurar, para a burguesia brasileira, aqueles anos milagrosos, aquela l'âge d'or do capitalismo brasileiro.
Essa sensação de cerco e impotência que sentimos diante de um país em avançado estado de degradação social e ambiental tem suas raízes justamente nessa confluência de tempos, onde um passado, não verdadeiramente superado, determina o presente e limita nosso futuro. "A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos" sentenciou Marx na sua célebre introdução ao Dezoito Brumário de Luis Bonaparte, nas mesmas páginas onde, inspirando -se em Hegel, asseverou que a história se repete como farsa.
Tanta gente partiu, "num rabo de foguete". Tanta gente sucumbiu. Tanto gente gritou, chorou, implorou pela vida, mas se foi. Mas eles, eles ainda estão aqui, aqui e ali, e o estão justamente porque o nosso passado não passou, e não passou porque eles, ontem e hoje, não quiseram e não querem que ele passe.
Alguns de seus agentes, os de coturno e bombas que explodem nos colos, no Rio Centro ou em Brasília, o dizem claramente. Grosseiros e lumpens, reivindicam o legado da ditadura e avidamente desejam sua restauração, enquanto comem com suas mãos virgens de livros e afeitas aos gatilhos. Mas outros dos seus agentes, ilustrados financistas, insignes togados e demais convivas empresariais e jornalísticos que sabem todos as boas regras de etiqueta, também fazem do nosso passado cruento um tempo perpétuo, não obstante o condenem em palavras, muitas vezes muito pouco condenatórias, aliás (quem não se lembra da "ditabranda" da Folha de São Paulo ou da cobertura da grande imprensa sobre o "revanchismo" da Comissão da Verdade durante o governo Dilma?). Segurando corretamente os talheres, nossos agentes democratas do grande capital, com muito atraso, até se viram impelidos a reprimir a grosseira escumalha da caserna em sua última (até agora) conspirata golpista, mas, afinal, quantos empresários temos mesmo entre as dezenas de indiciados por tentativa de golpe de Estado?
Servindo aos mesmos interesses, ou aos mesmos patrões, se quisermos, tanto os primeiros como os segundos, tanto os agentes "democratas" quanto os agentes neofascistas são cúmplices nesse passado presentificado, ou nesse eterno presente pretérito em que vivemos. Seremos nós, como não conseguiu Eunice Paiva, que teremos que, invertendo Matheus, enterrar os nossos mortos, para que possamos seguir em frente, sem que uma repetição farsesca da história ocorra tragicamente. Seremos nós, tal qual Eunice Paiva, que teremos que conseguir a certidão de óbito que nos interessa, a certidão de óbito política dos artífices, patrocinadores, beneficiados, torturadores, herdeiros políticos e defensores atuais da ditadura militar.
O tempo deles, das ações feitas apenas por eles, tem que passar. É a hora de passarmos nós a fazer o nosso tempo, enterrando os nossos do passado e encarcerado os deles no presente. Talvez assim o futuro possa não ser mais como era antigamente. A prisão de Bolsonaro pode vir a ser um pequeno começo, e é preciso ir às ruas por ela. Todo começo é difícil. Mas é preciso começar. E nós estamos aqui pra isso.