Esquerda, formação e religião
Por Felipe Demier, publicado em 02 de março de 2024
A crítica prática da religião é a prática crítica das condições sociais que explicam sua necessidade fantasmagórica. Compreender - e criticar - tais condições não significa, contudo, que o fantasma deixe de ser um fantasma. Tampouco o fato desse fantasma, encarnado na terra, ter desempenhado um papel mais ou menos conservador, ou mais ou menos progressista, não confere carne e osso ao mesmo, e nem faz com que os homens de carne e osso possam realmente se emancipar, isto é, construir uma terra onde o céu não seja mais necessário, posto que os seres de carne e osso estarão plenamente realizados e cientes da sua materialidade.
Que no passado nosso "espírito", na sua evolução carnal, tenha buscado sua poesia no céu, e progressivamente decapitado reis na Terra em nome de um Rei celestial, é plenamente compreensível, justamente porque o nosso "espírito" ainda não era um "espírito que se [sabia] espírito" (Hegel), ou melhor, uma humanidade que se sabia humanidade, carnes e ossos que, cerebralmente, se sabiam carnes e ossos. Mas que hoje aqueles que se propõe a dirigir a emancipação humana estimulem que o nosso "Espírito" volte a se ver como espiritual, a saber, que a humanidade volte a se ver como predicado e não como sujeito, que a terra seja tomada como derivada do céu, é absolutamente reacionário. Seu sentido prático, material, não é abolir as condições materiais que criam a necessidade do fantasma, mas sim preservá-las, na medida em que homens que acreditam em fantasmas não podem, não mais, conduzir a humanidade à luta contra as condições da fantasmagoria real do capital.
A propaganda religiosa da esquerda hoje, em especial a que é feita para a "formação" da juventude intelectual, não é senão o abandono da luta por um mundo sem carência espiritual, não é mais do que a busca por um coração celestial para um mundo desprovido de coração. Que a propaganda marxista seja substituída pela propaganda religiosa, agora adornada com estética antropológica, é a prova de que é a própria esquerda quem está a encerrar a antropologia, no seu sentido primevo, em nome de uma "resistência" que oculta sua teologia.
O que essa esquerda faz ao colocar a religião no lugar da formação, ao fetichizar o Sagrado em detrimento da teoria marxista, profana, é espalhar um ópio, mas não para confortar a dor dos que realmente precisam dele, e sim pra abalar a razão dos que ainda podem, pela idade e situação, abraçar a ciência da emancipação.