Flores do Mal: o possibilismo da esquerda e a redução da política

Flores do Mal: o possibilismo da esquerda e a redução da política
Max Ernst, Na primeira palavra límpida (1923).

Por Luis Felipe Miguel, em 13 de janeiro de 2024

A gente sabe: é de muito mau gosto postar a foto de Marta Suplicy dando um buquê de flores para Janaína Paschoal, em tributo por sua contribuição à derrubada da presidente Dilma Rousseff.

É bem verdade que na foto Marta aparece acompanhada por Ana Amélia Lemos, notória direitista que foi, em 2018, candidata a vice-presidente na chapa... do camarada Geraldo Alckmin.

As voltas que a política dá, alguém diria.

Mas, no caso de Marta, é mais do que isso.

Ela fez sua carreira política no PT. Embora fosse então casada com Eduardo, nunca foi uma mulher-que-se-elege-graças-ao-capital-político-do-marido. Sempre teve sua agenda, seu discurso, suas prioridades e correu em faixa própria.

No seu mandato como deputada federal, entre 1995 e 1999, foi uma voz importante em defesa de causas feministas. Foi uma boa prefeita de São Paulo (2001-2004), mesmo sofrendo ataques grosseiros da imprensa.

Não era uma santa – na política, ninguém é. A campanha homofóbica contra Gilberto Kassab, na eleição de 2008, foi um ponto baixo que manchou de forma perene sua imagem.

Mas a traição de 2016 foi demais. Marta não só era um nome histórico do PT como tinha sido ministra de Dilma.

Rompeu por ambição – sentia-se preterida em suas pretensões eleitorais – e por oportunismo. Vendo que os ventos mudavam, chegou a dar entrevista dizendo que “nunca foi de esquerda”. Apoiou com entusiasmo a “ponte para o futuro” de Temer, isto é, teto de gastos, desnacionalização da economia, precarização do trabalho.

Seu limite foi o bolsonarismo, é bem verdade. Nunca o apoiou.

Agora, com uma nova traição (a Ricardo Nunes, de quem era secretária e conselheira , o que não deixa de ser curioso para uma feminista), Marta está se refiliando ao PT, para ser vice de Boulos.

Sem um mea culpa. Sem um ato de contrição.

É contraditório num dia dizer que “perdão soa como impunidade”, como disse o presidente Lula na cerimônia de um ano do 8 de janeiro, e no dia seguinte cortejar uma golpista.

Do golpe contra Dilma ao bolsonarismo e à intentona do ano passado há uma linha reta.

E Boulos, o que ganha? Oficialmente, não se pronuncia: a vice é questão do PT.

Mas Marta é vista como alguém que amplia a candidatura à direita, o que o candidato do PSOL quer mais do que tudo.

Boulos comprova ser um Lula fast track, passando do “radicalismo” à moderação, do “principismo” ao eleitoralismo sem peias, do embate à conciliação, da esquerda ao centro em tempo recorde.

Terá sucesso? Não sei não. Não porque “a história só se repete como farsa” (sempre digo que não gosto dessas frases de lacração), mas porque os tempos são outros.


Sempre que publico um texto criticando o “pragmatismo” de líderes da esquerda – as concessões ao capital, as concessões aos pastores, as concessões ao Centrão, as concessões aos militares, as vices para golpistas etc. etc. – não falta quem venha dizer que não há outro jeito. Que as circunstâncias são essas. Que é o que temos para o momento.

Que, citando a frase atribuída a Bismarck, “a política é a arte do possível”.

Será mesmo?

Em certo sentido, sim – mas no sentido banal de que toda atividade humana, da engenharia à culinária, do futebol à medicina, é, a seu modo, uma “arte do possível”.

O problema é que a frase é lida numa chave em que o realismo cede lugar ao possibilismo.

Podemos contrastar o adágio de Bismarck ao trecho eloquente dos Cadernos do cárcere em que Gramsci descreve o “político em ação” como “um criador, um suscitador; mas não cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos seus desejos e sonhos. Baseia-se na realidade fatual”.

De maneira sintética, Gramsci está apontando a necessidade de ultrapassar tanto o possibilismo estreito, que vê os limites postos à ação política como imutáveis, quanto o voluntarismo, que julga que eles podem ser desprezados por mera decisão subjetiva.

Ele adota um realismo dinâmico, que é herdeiro de Maquiavel e de Marx, incluindo em seu relato tanto as energias transformadoras latentes no mundo social quanto a vontade atuante de mobilizá-las.

Grande parte da esquerda brasileira permanece estranha a essa dinâmica e presa ao possibilismo, que leva a uma redução brutal do horizonte de expectativas – a partir do entendimento que há uma “correlação de forças” favorável aos grupos conservadores e, portanto, nossa opção é entre o pouco e o nada.

Ou menos que isso. Desde o golpe de 2016, a direita endureceu suas posições e o que nos resta é o pouquíssimo, como alternativa ao menos que nada.

Nessa linha de pensamento, a correlação de forças é percebida sobretudo como aquela presente nas instituições políticas formais. O argumento é: Lula está diante de um Congresso muito conservador; logo, a margem para adotar políticas redistributivas e democratizantes é muito pequena. Corolário: é melhor esperar por muito pouco, porque mais do que isso não será possível alcançar.

Não estou entre os que negam liminarmente validade a um cálculo desse tipo. Na verdade, a diferença entre o muito pouco e o nada pode ser desprezada pelos privilegiados, mas muitas vezes é questão de vida e morte para os mais pobres.

O problema é que essa leitura trabalha com uma temporalidade limitada e retira de seu campo de visão toda a energia de mudança que está latente na sociedade – toda a inconformidade, a revolta, a indignação, que continuarão latentes, incapazes de ação organizada e efetiva, caso as forças políticas comprometidas com a transformação do mundo permanecerem indiferentes, mergulhadas numa visão da política que se resume ao cálculo eleitoral imediato.

Nota dos Editores: A presente publicação é um compilado de dois artigos distintos do autor. Os editores entendem que os textos se complementam e que, portanto, é conveniente que o leitor os receba em conjunto.

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