Marielle: a assim chamada violência brasileira

Marielle: a assim chamada violência brasileira
Wassily Kandinsky, Composição VII (1913).

Por Felipe Demier, publicado em 25 de março de 2024

A revelação de toda a rede entretecida entre expropriação/apropriação (e depois especulação, construção e venda) de terrenos, milícia, polícia e política faz lembrar como o capitalismo parece não conseguir, sobretudo na periferia do sistema, se livrar da obra de sua criação, da repetição viciosa da sua gênese sangrenta da "assim chamada acumulação primitiva", exposta no tal capítulo XXIV d'O capital. Se antes a coerção extraeconômica sustentava o berço de uma civilização com promessas de emancipação, hoje tal violência revela que não só muitas daquelas deixaram de ser cumpridas, como as que foram, e nos tornaram cidadãos iguais perante a lei, estão ameaçadas quando a lei é cúmplice dos fora da lei, ou melhor, quando quem as faz, fiscaliza e executa está no poder ou próximo dele.

Se a coerção muda nunca pôde dispensar totalmente a coerção violenta, hoje a preservação dos negócios grita, berra e cospe sangue. Se antes a força da grana e da propriedade erguia e destruía coisas belas, hoje ela parece só ter a propriedade de destruir as condições para qualquer vida digna, aqui e alhures. O meio ambiente, ainda mais na distante Zona Oeste, não poderia ser, claro, um óbice para um bom ambiente de negócios, e muitos menos os marginais se conteriam em face aos direitos de habitação de uma gente que sempre viveu à margem de qualquer direito.

A mesma fração burguesa supostamente ilustrada que desferiu o golpe de 2016, e que hoje normaliza o genocídio em Gaza em nome da "democracia de Israel", parece abismada ao ver o abismo a que a sociedade brasileira foi conduzida desde Temer, com seus Bragas Nettos e outros bolsonaristas que, na sequência, chegaram ao poder, cometeram um genocídio viral, e fizeram da ilegalidade a nova lei do capital. Depois de terem assestado um golpe de Estado em nome das leis do Mercado, se surpreendem que os fora da lei que se dispuseram a defender o segundo tenham penetrado por completo o primeiro, e se chocam que o seu Eduardo Cunha de ontem hoje tenha saído em defesa dos assassinos de Marielle. Se fecham os olhos para as recentes absolvições de sua Justiça de policiais assassinos de negros e pobres, os arregalam surpresos ao saber que um ilustre delegado é cúmplice de um assassinato de uma mulher negra. Depois de terem levado ao poder a extrema-direita, se surpreendem ao saber que um pouco antes ela havia executado uma militante da esquerda.

Outrossim - palavra que irritava o genial velho Graça -, parecem não entender como, depois de uma Lava Jato, de um Moro, de um golpe e de um apoio a Bolsonaro em 2018, entregaram de graça quase todas as instituições do seu Estado a uma lumpen-burguesia, a milicianos de postos de gasolina, grileiros assassinos e parvenus vendedores de imóveis irregulares, gás e internet. Vetusta e bestializada com sua própria obra inconsciente, com seus filhos temporãos que, pela violência, fazem lembrar sua tenra infância e incompreendida adolescência com picardias e golpes militares, nossa burguesia supostamente democrática se vê forçada a encarar, na TV, na sua TV, a sua alma escravagista e autocrática, para a qual o corpo de Marielles da vida nunca valeram algo, e para a qual mesmo os valores burgueses do secular Iluminismo nunca foram atraentes diante do dever religioso de se preservar uma sociedade do valor construída pela morte, pela chibata e por milícias de capitães do mato caçadores de escravos.

Se por aqui nossa classe dominante nunca contou com um corajoso Cromwell ou com um Bonaparte de faustos helênicos, hoje lhe resta como lídima expressão da sua caserna um Braga Netto e um Heleno; se ela jamais se valeu de um Brissot, Hamilton ou Condorcet, nos tempos hodiernos só lhe restam os Brazões, os Hamilton Mourões, os Liras e toda essa gente que só sabe fazer morrer toda uma gente que só faz sofrer.

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