Não, a Revolução Francesa não foi revogada no domingo

Não, a Revolução Francesa não foi revogada no domingo
Wassily Kandinsky, Grande Ressurreição, 1911.

Publicado por Elídio Marques em 01 de julho de 2024.

Não, a Revolução Francesa não foi revogada no domingo. Nem as histórias de lutas e resistências sediadas naquele país. Em pílulas para o leitor não especializado e com pressa:

1- O sistema político francês pode ser definido como "semi-presidencialista" na visão oficial (ou presidencialismo intermitente, na minha): o presidente tem poderes importantes, como o de dissolver o parlamento e convocar novas eleições. Mas, o governo do "dia a dia" depende da maioria parlamentar;

2 - O sistema eleitoral francês é uninominal majoritário em dois turnos; traduzindo: o país é todo dividido em pedacinhos e cada um elege um deputado no 2o turno (para o qual passam todos que tiveram mais de 12.5% dos inscritos); poucos conseguem se eleger já de primeira;

3 - Como em qualquer sistema majoritário, há um potencial de tremenda distorção com super representação das maiores forças e esmagamento das menores;

4 - Depois das eleições europeias, Macron apostou forte - não deu para entender muito bem em que - e chamou novas eleições parlamentares. O mandato dele vai até 2027;

5- Macron é uma expressão peculiar da crise das democracias - "nem de esquerda nem de direita". Eu diria que se trata de uma direita liberal, mas é justo assinalar que se manteve contra a extrema-direita, embora assimilando algumas de suas pressões;

6- O "macronismo" foi evoluindo de algo transpartidário para um agrupamento mais definido. A direita tradicional pós-gaulista se descolou de um lado, a social-democracia se enfraqueceu de outro (depois da presidência anódina inodora social liberal de Hollande);

7 - A esquerda respirou nas ruas e na formação sob a liderança de Melanchon (suspensas as críticas maiores para próximo momento). Formou-se uma grande frente para estas eleições a Nova Frente Popular, NFP, que vai desde o social liberalismo sem sal até o combativo trotskismo operário (sim, existe e combate);

8 - É correto tratar a RN como extrema direita. Suas raízes são terríveis e remontam ao pior da França ocupada e do colonialismo. Não se deve subestimar isso. Mas também é importante termos o realismo de saber que soube mudar de roupagem e linguagem, conciliando a manutenção da base de apoio já fiel de décadas com a ampliação para as bases e interlocuções com a direita mais tradicional, que sempre foi forte na França;

9 - A RN tem dois discursos. Um deles é paradoxalmente silencioso. Promete racismo, islamofobia, antieuropeísmo, restauração, revisionismo histórico à metade mais abertamente reacionária de seus 34% de votos. Mas o faz sem dizer tão explicitamente, apenas com base na representação passada que não perdeu. O outro, dirigido à midia, às instituições, aos conservadores órfãos de Chiracs e Sarkozys aproxima-se do "bom senso": regras para migração, soberania, defesa dos interesses do país;

10 - Assim como a social-democracia e seus 100 anos de oportunidades, a esquerda mais alternativa sob cerco virulento das instituições europeias, as superadas democracias cristãs e direitas liberais, a mágica do macronismo também decepcionou as massas. É nessa esteira da impossível gestão do ingestionável capitalismo predatório atual que grassam essas hipócritas forças do obscurantismo disfarçado de antisistema recivilizatório;

11 - No fechamento das urnas do 1o turno e frente aos resultados chocantes e esperados, tanto a NFP quanto o macronismo chamaram à barreira contra a extrema direita. Dois sinais: um é que parte da direita tradicional já apoia a extrema direita ou se mostra indiferente ao resultado, abrindo brechas no firewall que até aqui manteve a RN fora do poder central. Outro é a importante disponibilidade para uma frente muito ampla;

12 - Os resultados são negativos e preocupantes. Das urnas no dia 7 poderá sair um governo liderado por um jovem descendente político dos torturadores da Argélia e de coisa pior em Vichy. Poderá sair a normalização desse tipo de força e poderá se estabelecer um trampolim que ninguém pode dizer em que vai dar nos próximos vinte anos. Mas se sair um governo de coalizão amplíssima entre esquerdas e macrons o desafio também será gigantesco;

13- Nós - contra a barbárie ou os que somos oficialmente contra a barbárie - já temos gasto todas as fichas e chances de convencer as massas - aquelas mobilizadas e traídas pela revolução francesa. Deus, se existe, se for a voz do povo, não tem mais paciência. Não há mais tempo. Lá, aqui, em qualquer lugar, nas urnas, ruas, onde for, ou se vence para vencer mesmo ou se assiste a uma degradação que sabemos, no essencial, onde pode chegar.

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