O crime de Joe Biden contra a humanidade

O crime de Joe Biden contra a humanidade
Yves Tanguy, Vento (1927).

Publicado por Gilbert Achcar, em 06 de agosto de 2024.

Desde que anunciou a sua decisão de não concorrer a um segundo mandato como Presidente, Joe Biden tornou-se um “pato manco”, expressão comum nos Estados Unidos para descrever um governante eleito que chegou aos últimos meses do seu mandato sem perspectivas de sucesso. A expressão significa dizer que a sua influência foi reduzida, pois todos sabem que ele não permanecerá no cargo por muito tempo. Contudo, uma pessoa em tal situação num sistema político presidencial em que o presidente é eleito por sufrágio universal (indiretamente, no caso dos Estados Unidos), por outro lado, também tem mais liberdade do que um presidente que faz campanha por um novo mandato e precisa garantir não perder votos em razão de posições ou medidas que possa adotar.

A verdade é que Biden mostrou até agora que está mais próximo à condição deste último do que do primeiro, no que diz respeito à atual guerra genocida de Israel na Faixa de Gaza. O comportamento do presidente norte-americano face ao governo de Benjamin Netanyahu afastou-se claramente da abordagem semicrítica que começou a adotar, depois que percebeu quão custosa era eleitoralmente a sua total cumplicidade na agressão sionista contra o povo palestino, especialmente entre os eleitores tradicionais do Partido Democrata, já que foi denunciado até dentro do próprio partido. A atual agressão contra Gaza é a primeira guerra travada pelo Estado de Israel com a participação total (e não apenas o apoio defensivo) dos Estados Unidos, sem a qual uma guerra de intensidade tão destrutiva e assassina não teria sido possível, em primeiro lugar.

Desde que Biden enfrentou as consequências do seu apoio à guerra genocida sionista, incluindo a pressão sobre ele por uma ala do seu próprio partido para que fizesse ao menos algum esforço para bloquear a agressão que atingiu níveis terríveis nas suas primeiras semanas, vimos a sua administração ajustar sua posição e permitir que o Conselho de Segurança da ONU convocasse um cessar-fogo, depois de tê-lo impedido durante meses (ver o meu artigo: A mutação de Biden: de falcão a pomba, de 11 de junho de 2024). Também vimos a administração Biden fazer alguns esforços para alcançar um “cessar-fogo” – na verdade, o fim da guerra genocida que o Estado sionista está travando unilateralmente – sem qualquer “troca de tiros” notável (apesar do habitual exagero e alarde da mídia do campo anti-Israel, como consequência de um mau hábito estabelecido pelos regimes nacionalistas árabes na década de 1960). A administração Biden, com a ajuda do Egito e do Qatar, fez esforços ousados ​​para chegar a um acordo que visasse pôr fim aos “combates” (massacres e genocídio, para ser mais preciso) e à troca de detidos entre o governo sionista e o Hamas.

Isso ocorreu até Biden sucumbir à pressão de dentro do seu partido, bem como dos seus apoiadores e principais assessores, que o instaram a anunciar que não se candidataria a um segundo mandato como presidente. Desde então, isto é, desde que se libertou da obrigação de ter em conta as pressões ligadas à guerra de Gaza a que foi sujeito, tanto em nível eleitoral como partidário, a sua posição recuou para a indulgência dos "orgulhosos sionistas irlandeses-americanos” em relação ao “orgulhoso judeu sionista”, nas palavras de Netanyahu durante a sua visita de despedida ao frágil presidente americano. O retrocesso na posição de Biden ficou evidente na forma como reagiu ao recente assassinato de Ismail Haniyeh por Israel em Teerã.

Ao comentar o assassinato, o presidente norte-americano disse simplesmente que isso “não ajuda” nos esforços em curso para chegar a um acordo entre o governo de Netanyahu e os líderes do Hamas, uma declaração muito eufemística, por sinal. O assassinato do chefe do gabinete político do grupo palestino é, de fato, um duro golpe nestes esforços que a administração Biden tinha priorizado na sua recente atividade diplomática regional. Ismail Haniyeh foi o principal interlocutor da administração Biden, que o pressionou para, por sua vez, pressionar Yahya Sinouar, chefe do Hamas em Gaza, a fim de alcançar a trégua almejada.

O assassinato de Haniyeh em Teerã teve um impacto ainda mais grave do que a sua repercussão nas negociações sobre a guerra de Gaza, porque constituiu uma escalada altamente perigosa no confronto entre o Estado sionista e o regime iraniano. Inevitavelmente provocará uma resposta de Teerã que poderá desencadear, sem controle, a espiral de um confronto militar regional em grande escala. Em outras palavras, ao sinalizar a luz verde para o assassinato, Netanyahu arriscou implicar os Estados Unidos numa guerra potencialmente pior do que qualquer guerra que Washington já tenha travado no Oriente Médio até hoje. Em vez de repreender o seu aliado, o “orgulhoso judeu sionista”, Biden demonstrou mais uma vez o seu “compromisso férreo” com a defesa de Israel, ordenando à sua administração que enviasse reforços militares de emergência para a região para proteger o estado sionista. Quanto à afirmação da administração de que continua os seus esforços para chegar a um acordo, é totalmente hipócrita, pois sabe perfeitamente que o assassinato destruiu esta perspectiva e que o objetivo de Netanyahu era precisamente destruí-la. Biden agiu como se tivesse conhecimento prévio da preparação do assassinato e não se opôs a ele: ao contrário, o apoiou.

Na verdade, o presidente americano revelou que o seu “compromisso férreo” é verdadeiramente incondicional, tanto que permanece válido mesmo quando o comportamento de Israel contradiz os interesses do governo americano, tanto os seus interesses materiais (o elevado custo de uma possível guerra, especialmente quando Washington já enfrenta grandes dificuldades em continuar apoiando o governo ucraniano diante da invasão russa), bem como os seus interesses políticos (a imagem dos Estados Unidos em grande parte do mundo e entre grande parte da humanidade). Infelizmente, Joe Biden não se encontrará no banco dos réus perante o Tribunal Penal Internacional, isso é certo. Mas não há dúvida de que o tribunal da história, que é o mais justo de todos os tribunais criminais, colocará o seu nome no topo da lista dos autores de crimes contra a humanidade.

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Originalmente publicado em Al-Quds al-Arabi: https://www.alquds.co.uk/%d8%ac%d8%b1%d9%8a%d9%85%d8%a9-%d8%ac%d9%88-%d8%a8%d8%a7%d9%8a%d8%af%d9%86-%d8%b6%d8%af-%d8%a7%d9%84%d8%a5%d9%86%d8%b3%d8%a7%d9%86%d9%8a%d8%a9/ 

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