O fracasso da força: um ano da intentona bolsonarista

O fracasso da força: um ano da intentona bolsonarista
Salvador Dalí, Construção Macia Com Feijão Cozido (1936).

Por Felipe Demier, em 08 de janeiro de 2024

Um ano do golpe circense e fracassado do 8 de janeiro de 2023. Entrevistas e documentários destacam a argúcia dos homens e mulheres que "salvaram a Democracia". Embora cada um pareça tentar exaltar a sapiência própria ou dos seus chegados (Alexandre de Moraes, Janja, Flávio Dino etc.) como o elemento decisivo para o desfecho do processo, de um modo geral, tanto jornalistas quanto militantes parecem se guiar por uma leitura logicamente formalista, analiticamente politicista e metodologicamente individualista daquela trama em Brasília no início do ano passado. Senão vejamos.

A tal genialidade deste ou daquela personagem cai por terra, antes de qualquer coisa, pela própria obviedade da coisa. Afinal, qualquer um com mínimas noções de política saberia que decretar a GLO, naquele cenário, seria seguir o script do golpismo, e, claro, dividir o poder decisório com a caserna, majoritariamente simpática ao bolsonarismo, não pareceria uma boa ideia nem mesmo ao mais ingênuo e imberbe coordenador de Centro Acadêmico. Mas isso não é o mais importante.

Ora, tanto o núcleo mais orgânico da burguesia, representado pela grande mídia empresarial, quanto o alto comando das FFAA, não eram adeptos, naquele contexto, de um golpe contra as urnas e pró-Bolsonaro. Não foi devido à argúcia deste ou daquele membro do governo recém-empossado (pego de surpresa, aliás) ou de figuras de proa dos poderes institucionais (que antes tergirversavam quanto à repressão aos acampamentos nos quartéis, preparatórios do golpe burlesco do dia 8) que a intentona neofascista falhou. Tampouco houve uma resistência popular ao golpe – salvo alguns atos simbólicos da esquerda no dia seguinte – e o governo nem mesmo recorreu a ela (o que é do feitio dos seus chefes, como observamos em 2016).

A direção política da classe dominante brasileira – caótica e um tanto ainda desarticulada em termos partidários, é verdade – não planejou um golpe de Estado, nem aquiesceu com o mesmo, articulado pela cúpula bolsonarista, levado a cabo por uma massa amorfa dos estratos médios caipiras, engelhadas histéricas e arrivistas paranóicos, e financiado pela lúmpem-burguesia e outros proprietários de "origem e fortuna duvidosas". O alto comando da caserna, por sua vez, parece ter achado por bem não se envolver – salvo aqueles da cúpula bolsonarista – numa aventura apartada do grande capital e dos Estados Unidos, preferindo salvaguardar a ordem e ao menos parte das suas benesses estatais por meio das negociações com o novo governo, ainda que tais negociações possam se dar ao estilo getulista do "deixa como estar pra ver como é que fica" – e, assim, vão ficando...

Um golpe normalmente busca legitimidade ideológica na lei, mas não se agarra a ela – afinal, trata-se de um golpe. Não foi uma canetada ou, no caso, uma “não canetada” (Lula não ter assinado um decreto de GLO) que obstou o putsh histriônico no Distrito Federal há um ano. Quando se troca a força dos argumentos pelo argumento da força, é essa última que decide. E ela, depositada nas FFAA, faltou ao encontro, e não o fez porque faltou uma assinatura num papel. As folhas o vento leva, mas a força, não, e o papel das personagens, embora dotado de certa autonomia relativa na cena política, não pode ser pensado fora da correlação de forças entre as classes e grupos sociais que vertebram a trama.

Decerto, se tais personagens, no caso, a maioria dos generais do alto comando, estivessem mesmo dispostos ao golpe, isto é, a romper a legalidade constitucional pela força, ainda que se valendo de um momento daquela legalidade (a assinatura do GLO) para, de imediato, subvertê-la (de empoderados momentânea e localizadamente pelo GLO para a derrubada do presidente eleito e o seu – dos generais – empoderamento total e permanente), não seria propriamente a falta de um primeiro momento de legalidade que os impediria. Não parece ser equivocado supor que, visceralmente antipetistas, muitos ali dos fardados, com quatro estrelas e atrás da mesa, tenham torcido a favor dos sediciosos, aguardado até o último instante para agir, e esticado a corda ao máximo de modo que, caso o putsh bolsonarista tivesse êxito pleno e um efeito cascata se espalhasse pelas grandes capitais do país, eles pudessem, com um sorriso mal disfarçado e desfile de tanques, tomar parte na trama e quebrar a ordem democrática em nome de garanti-la.

Contudo, a verdade é que se a maioria do alto comando castrense estivesse, naquele momento, e naquelas condições verificadas, disposta a romper, pela força, com a ordem legal, não seria a falta de decretação da GLO por parte de um presidente a ser deposto que a faria desistir de "garantir a ordem", com ou sem a presença do “L de lei” da sigla do artigo 142. O roteiro seguiria, mesmo que com alterações em algumas cenas, mas o final da película seria, provavelmente, o mesmo. Trágico. A burguesia brasileira e seus homens togados, fardados ou não, são experts em casuísmos jurídicos e facilmente encontrariam alguma brecha, ou criariam uma, depois que a força tivesse feito o seu papel, com ou sem a assinatura em um papel. Mas a maioria do alto comando militar, em função da posição anti-golpe do núcleo orgânico da burguesia brasileira e sobretudo pela declarada recusa do EUA em apoiar qualquer desrespeito ao resultado do escrutínio de 30 de outubro, optou por não aderir à intentona bolsonarista.

Assim, ao invés de disputarem entre si o protagonismo da argúcia política que teria freado o golpe do 8 de janeiro do ano passado, os homens e mulheres do governo deveriam se preocupar em não deixar a história ser feita apenas de um lado, lado que há um ano não quis uma coisa, mas que amanhã pode muito bem vir a querê-la. Também não parece muito seguro confiar totalmente a segurança de seu governo aos tais "defensores da democracia" instalados nos outros poderes, os quais, há bem pouco tempo, mais precisamente em 2016, não hesitaram em maculá-la sob o argumento de pedaladas fiscais. A colaboração com o grande capital, a não punição aos generais golpistas e as tentativas de acomodação com o Centrão não fazem mais do que pavimentar o chão para a volta ao poder do bolsonarismo, com ou sem golpismo. Assim, aos que tiverem ouvidos, que ouçam: "Acautelai-vos do fermento dos fariseus e saduceus".

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