O horizonte político do bolsonarismo é a guerra civil
Por Demian Melo, em 22 de janeiro de 2024
O horizonte estratégico do bolsonarismo é a guerra civil, já que se trata de um fenômeno fascista. Sendo fascista, implica o método de ganhar o poder a partir de uma violência redentora, capaz de purificar a sociedade dos elementos responsáveis pela decadência da mesma.
Corolário disto é que os neofascistas apostem num tipo de cisão social que prepara o terreno para a guerra civil. Esse é um ponto em comum com o trumpismo, assim como é possível assinalar a existência de uma narrativa conspiratória em ambos. Os inimigos deles devem ser exterminados, já que (como ensina o misterioso Q Anon) seriam resultado de uma heteróclita conspiração que envolve as esquerdas, George Soros e suas ONGs e tudo mais que apontam como parte do "sistema". Toda essa conspiração redundaria na suposta existência de uma máfia de pedófilos, o que corrobora com toda a maluquice sobre "marxismo cultural", "ideologia de gênero", "ditadura gay" etc., todos ingredientes táticos de uma também suposta "estratégia gramscista" da esquerda para conseguir chegar ao poder atacando a "família cristã tradicional". Trata-se de uma idiotice que pode nos fazer rir, mas que tem ampla penetração em setores de massa da população, radicalizados a partir desse discurso. E essa radicalização leva à conclusão óbvia de que pedófilos devem ser exterminados, e como a esquerda seria supostamente uma reunião de pedófilos e inimigos da família, não poderia lhe caber um destino diferente. A guerra civil, a guerra de extermínio, seria um guerra santa, uma guerra "para o bem da nação, da tradição cristã e da propriedade privada!".
O resultado é que a produção e circulação de um vídeo falso do Padre Júlio Lancelloti faça todo sentido para essa massa de imbecis. Isso significa que o discurso racional, que apela para uma perícia confiável, não é capaz de fazer esses imbecis enxergarem a manipulação. A denúncia falsa, feita por uma psicopata como Damares, de um terrível esquema de pedofilia em Marajó ganha credibilidade em setores populares, mesmo que a ex-ministra imunda nunca tenha apresentado qualquer prova sobre isso ou mesmo feito uma denúncia formal. Contava com sua posição de ministra para mentir e difundir uma narrativa nojenta na frente de crianças durante um culto de uma igreja evangélica.
O sistema de peritos que envolve a Ciência, as Universidades, instituições de pesquisa e mesmo a imprensa profissional já foram desacreditadas pela narrativa da extrema-direita. Para esta as Universidades, a imprensa e o mundo da cultura em geral já foram denunciados como parte do tal "sistema" e, como já vimos, o sistema é simplesmente um complô de pedófilos. Enquanto isso, a letargia do sistema de justiça em punir os criminosos de extrema-direita permite que estes sigam conspirando e promovendo a desestabilização política do país à luz do dia.
Eis que não existe possibilidade de qualquer acordo com a extrema-direita: para a direita tradicional, resta a adesão; para a esquerda hegemonizada pelo centrismo e a defesa da ordem, resta um coturno no meio da fuça.
A esquerda brasileira é uma vergonha mundial. A extrema-direita tentou abertamente um golpe de Estado, e para isso mobilizou milhões pelo país no processo eleitoral e depois milhares na frente de quartéis e depois no 8 de janeiro. A esquerda majoritária, mesmo tendo mobilizado milhões para derrotar Bolsonaro nas urnas, hoje basicamente torce para que Xandão resolva tudo, enquanto se refugia em disputas insólitas sobre a linguagem cotidiana, introduzindo uma novilíngua para que todos falem "todes", ou que troquem o termo “mulher” na formulação de políticas públicas por expressões como "pessoas com útero"; ao mesmo tempo em que torce pelo BBB, numa postura miseravelmente acrítica em relação à indústria cultural, já que acredita que a reeleição dos seus mandatos parlamentares depende do desempenho nas redes sociais e, nesse sentido, assuntos que engajam devem ser explorados. Não está completamente errada em vincular sua estratégia eleitoral ao desempenho nas redes pois, afinal, isso é algo que a extrema-direita já sabe e, aliás, está anos-luz à frente. Mas cabe aqui assinalar a diferença: a extrema-direita busca mobilizar a partir da criação de um conjunto de aparatos comunicacionais que têm sido capazes de, por sua vez, criar uma realidade paralela para sua clientela, o que reforça sua imagem de "antissistema". Já a esquerda tem ficado entre o sistema de informações tradicional da mídia liberal e um conjunto frágil de iniciativas de comunicação que vão das que promovem simplesmente a torcida para que "o governo dê certo" e uma parte mais crítica com pífia capacidade de mobilização. Em suma, de uma lado a extrema-direita intransigente; de outro, uma esquerda banana que tem medo de mobilização de rua ou que foi ganha para ideia estúpida de que "existir já é resistir".
Numa palavra: se o horizonte que o fascismo bolsonarista apresenta é o da guerra civil, e daí a centralidade da sua política armamentista, a maior parte da esquerda espera que as estruturas apodrecidas da institucionalidade liberal sejam capazes de acabar com o bolsonarismo. É uma miséria de tempos, onde temos uma direita travestida de “revolucionária” e uma esquerda defensora do sistema.