O novo mandamento do Monte Sinai: morte e diáspora do povo palestino

O novo mandamento do Monte Sinai: morte e diáspora do povo palestino

por Mateus Forli, em 26 de outubro de 2023

No dia 17 de outubro, o Instituto Misgav para a Segurança Nacional e Estratégia Sionista, think tank sionista ligado a políticos da Likud ("Congregação" em hebraico, partido político de Netanyahu), publicou proposta afirmando que Israel tem "uma oportunidade rara e única de evacuar toda a população de Gaza em coordenação com o Egito". 

O think tank é atualmente presidido por Meir Ben Shabbat, que serviu como Conselheiro de Segurança Nacional de Israel de 2017 a 2021 e por 30 anos no Serviço de Segurança Geral – a chamada Shin Bet, ou Shabak, agência de inteligência voltada para a segurança interna de Israel, notória pela prática regular de tortura, com anuência da Suprema Corte israelense, contra prisioneiros políticos palestinos. Meir Ben Shabbat é colunista no Israel Hayom, um dos jornais de maior circulação entre israelenses, e nas últimas semanas tem deixado a sua pena correr ao ritmo dos bombardeios contra as crianças, jovens, adultos e idosos, mulheres e homens de Gaza. O seu último artigo, intitulado "A única opção que Israel tem", leva o lead a seguir traduzido: 

“As circunstâncias em que Israel entrou na guerra em Gaza dispensam-no de lidar com o que acontecerá em Gaza depois da guerra. A razão para isso é simples: Israel não tem outra escolha. Tem de responder com uma força esmagadora, e deixar que as coisas aconteçam como forem.”

A razão para os editores do Israel Hayom e Ben Shabbat começarem assim o texto é simples. Eles pretendem justificar a continuidade e intensificação do massacre na Faixa Gaza, advogando pela sua destruição e por uma "solução final" da questão palestina, baseada na limpeza étnica.

A quantidade de palestinos mortos e feridos aumenta rapidamente todos os dias com os bombardeios incessantes em áreas residenciais, em escolas, templos religiosos, hospitais, comércios e rotas de fuga. E aumentam insidiosamente com o bloqueio de alimentos, água, combustível, eletricidade e demais suprimentos, fazendo colapsar hospitais, comércios e toda a infraestrutura básica necessária à sobrevivência dos palestinos.

São milhares os palestinos "presos administrativamente", sem direito à defesa, verdadeiros reféns de Israel, em território ocupado ilegalmente. Até a última atualização, desde o dia 7, foram assassinados mais de 5 mil palestinos, dentre os quais mais de 2 mil eram crianças. Para sermos mais cristalinos, os bombardeios israelenses assassinaram uma criança a cada 12 minutos desde o dia 7 de outubro. As mortes de 1400 israelenses, por sua vez, aconteceram, na sua grande maioria, no próprio dia 7 de outubro, em combates quando das respostas do Hamas e Jihad Islâmica ao aumento da violência colonial israelense.

A guerra de Israel é contra a população civil, o que está explícito nas suas ações e ficará bem ilustrado na defesa de Ben Shabbat, a seguir. Assim, embora seja custoso vislumbrar um pouco do que passa pela mente doentia dos criminosos de guerra e de seus vates, vale ler as primeiras linhas do seu artigo, suficientes para dele extrair o objetivo que evoca e procura justificar de antemão:

"'Uma guerra de aniquilação' – foi assim que James Mattis, que foi Secretário de Defesa dos EUA na administração Trump, se referiu à luta contra o Estado Islâmico em Mossul, no Iraque. Entre 2016 e 2017, a guerra nesta região durante esses anos foi o conflito mais intenso numa área habitada desde a Segunda Guerra Mundial. A destruição causada em Mossul foi semelhante, na sua magnitude, à que os Aliados infligiram a Dresden em fevereiro de 1945.

No final da batalha em Mossul, a ONU estimou que mais de 80% da cidade, a segunda maior do Iraque, estava inabitável. Uma experiência semelhante ocorreu em Raqqa, na Síria, outro reduto do Estado Islâmico que foi alvo do exército americano, que também terminou com o rótulo de 'impróprio para habitação humana'. Este é o verdadeiro corolário que deveria vir com a afirmação de que 'o Hamas é o Estado Islâmico'.

No dia 7 de outubro, o Estado dos sobreviventes do Holocausto foi atacado pelos novos nazis. O seu plano hediondo e a sua crueldade foram exibidos plenamente para todo o mundo ver. Nesta guerra, Israel não tem escolha. Tem de agir como os Aliados fizeram na sua guerra contra os nazis.

É tempo de acabar com o mito de que 'a população de Gaza é vítima do Hamas, que se impôs a ela'. É verdade que nem toda a gente apoia o Hamas. Há muitos que não partilham os seus métodos, mas o nível de apoio que lhe é dado mina a afirmação de que ‘o Hamas não representa os palestinos'.".

Não se tecerão comentários sobre as ilações de que as organizações palestinas e, por extensão, o próprio povo palestino, seriam os "novos nazis". Elas são típicas da canalha hipócrita e covarde que promove há décadas um projeto de limpeza étnica na Palestina. A citação serve apenas para ilustrar que Israel não faz diferença entre "terroristas" e "inocentes". Todos os palestinos são iguais sob a tempestade de bombas.

Mas aos que são incapazes de ouvir as vozes de dor e terror do povo palestino, bem como compreender as razões de sua resistência e as formas que assumem – ainda que possam delas discordar –, convém ouvir os companheiros do "Vozes Judaicas pela Paz", movimento estadunidente que congrega, inclusive, familiares de judeus vitimados em antigos campos de concentração e extermínio nazistas, quando eles taxativamente afirmam: "Não em nosso nome!".

Por outro lado, falaremos, sim, do que parece ser a conclusão sanguinária de Ben Shabbat, escorado na renovada falcatrua discursiva que pretende equiparar o combate contra os nazistas na Segunda Guerra com o genocídio contra o povo palestino, evocando o episódio histórico do bombardeio de Dresden, em 1945.

Não é a primeira vez que propostas para uma limpeza étnica completa são aventadas por analistas e políticos israelenses. Para ilustrá-lo, mencionaremos apenas alguns poucos exemplos mais recentes. Conforme nos lembra matéria publicada no portal MondoWeiss, em meio ao massacre contra Gaza, de 2014, Moshe Feiglin, que fazia parte da Likud e era então vice-presidente do Knesset (Assembleia Legislativa de Israel), enviou a Netanyahu uma proposta de 7 pontos para a limpeza étnica de Gaza. Mais recentemente, em uma entrevista ao Canal 14 de Israel, Feiglin pediu, assim como Ben Shabbat, uma nova "Dresden" em Gaza – nas suas palavras, "uma tempestade de fogo em toda Gaza!", exigindo "não deixar pedra sobre pedra", enfatizando "o fogo total!" e "o fim dos fins!", e encerrando, aos berros, com inequívoca intenção genocida: "Aniquile Gaza já! Já!".

À luz de todos os absurdos que têm sido defendidos e cometidos contra a população palestina, fica evidente que o objetivo é, efetivamente, transformar a Faixa de Gaza em território "impróprio para habitação humana", a exemplo de Dresden ou de Mossul, como lembrou o desabençoado articulista. É neste contexto que vem a proposta do Instituto Misgav, assinada por Amir Weitman, poderoso membro da Likud e aliado de Benjamin Netanyahu. A peça fala em comprar habitações parcialmente construídas nas cidades satélite do Cairo, para lá atirar a totalidade da população palestina sobrevivente na Faixa de Gaza.

Também não é a primeira vez que uma proposta como essa foi aventada e há uma razoável margem para acreditar que não será a última - afinal, é necessário por a população israelense de acordo com o dolo genocida. No dia 15 de outubro, o antigo vice-ministro israelense dos Negócios Estrangeiros, Danny Ayalon, disse à Al Jazeera que os habitantes de Gaza devem evacuar as suas residências e deslocar-se para o deserto do Sinai, no Egito, onde poderão ser criadas "cidades temporárias". 

Eis que não é sem propósito que, no dia 18 de outubro, em coletiva de imprensa junto a Olaf Scholz, Primeiro-Ministro da Alemanha, o Presidente do Egito, al-Sisi, tenha declarado que:

"Todo o conceito de transferir palestinos da Faixa de Gaza para o Monte Sinai importa em simplesmente mover as lutas e a resistência da Faixa de Gaza para o Sinai, o que significa que o Sinai se tornará uma base para operações militares contra Israel, e que Israel tentará se defender e direcionar suas operações militares contra o Egito e o Sinai. O Egito está comprometido em estabelecer a paz. Nós devemos permanecer dedicados ao processo de paz, que deve apresentar uma solução viável. Se houver uma transferência, que seja para o Deserto de Neguev, em Israel. Que Israel faça como desejar com as suas operações militares em Gaza, antes de devolver os Palestinos para lá. O corte de água, energia e suprimentos para Gaza é um meio para Israel forçar os palestinos na península do Sinai, o que rejeitamos totalmente.".

Segundo Lina Attalah, em seu artigo intitulado A solução do Sinai: Reimaginar Gaza no período pós-Oslo, no dia 24 de outubro, um documento vazado do gabinete da Ministra de Inteligência israelense, Gila Gamliel, defende que para "produzir resultados estratégicos positivos e de longo prazo" a solução do pós-guerra em Gaza tem de incluir a transferência dos palestinos para o Sinai, no Egito. O documento delineia três passos: o estabelecimento de cidades de tendas no Sinai, a criação de um corredor humanitário e a construção de cidades no Norte do Sinai para os novos refugiados. Além disso, defendem criar no Egito, ao sul da fronteira com Israel, "uma zona estéril" com vários quilômetros de extensão para impedir o regresso dos palestinos. Nas suas palavras:

"[A] rejeição veemente de Sisi a uma 'segunda nakba', especialmente depois dos esforços diplomáticos liderados pelos EUA para pressionar o Egito a criar um corredor humanitário, foi transformada numa tentativa de angariar o apoio da opinião pública ao seu governo. A menos de um mês das eleições presidenciais, anunciadas às pressas em meio a uma crise econômica devastadora, Sisi apelou a manifestações populares para apoiar a sua posição. O seu apelo levou a que algumas milhares de pessoas participassem nas manifestações de 20 de outubro, principalmente no Cairo.".

A reiteração da proposta não permitirá que nos espantemos se (ou quando) os EUA e demais potências levantarem formalmente esta como uma saída "humanitária" e "pacífica" para a resolução da "guerra". A saída de uma limpeza étnica através do aprofundamento da diáspora palestina poderá soar um tanto mais razoável que o seu extermínio direto. Os propositores parecem contar com isso e com a compreensão da "comunidade internacional". O que sabemos, em contrapartida, é que a rejeição do atual governo egípcio, em linha com os que lhe antecederam, é veemente. Se cederá ou não às pressões continua em aberto, e dependerá fundamentalmente das contrapressões internacionais.

Mas que papel caberá a nós, da esquerda brasileira? Diante do quadro que se desenha, será que o que nos resta é apenas aguardar o desenrolar da política externa do atual governo, anotando as sutis sacadas dos nossos gênios diplomáticos?

Ora, enquanto aguardamos as peripécias dos diplomatas, os palestinos morrem em ritmo acelerado, de maneira pública e notória – apesar da fabulação midiática, na sua sempre firme propaganda sionista. Deveria ser óbvio que todo o discurso que sugere que esta se trata de uma "guerra contra o Hamas", todo discurso que opta, sobretudo e antes de qualquer coisa, por condenar a resistência palestina como "terrorismo" e procura equipará-la às agressões e morticínio históricos perpetrados por Israel, além de falso, alimenta a máquina de guerra que vitima milhares em um massacre que, ao que tudo indica, pretende ser retesado,  ampliado e progressivamente intensificado pelas potências ocidentais. 

Por isso é absolutamente legítima e necessária a posição emitida pela Fepal (Federação Árabe Palestina do Brasil) no dia 23 de outubro, rogando ao governo brasileiro pela ruptura com o Estado de Israel, a exemplo da postura assumida pelo presidente Gustavo Petro, na Colômbia, e pelo desenvolvimento de um bloco do sul global comprometido com o BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). Se bem que há muito o que esclarecer sob o lodo da mídia tradicional, nacional e internacional, é dever histórico de qualquer um que reivindique para si alguma dose de humanidade se opor com o máximo de vigor e urgência ao processo em curso.

É necessário que continuemos nos organizando para os atos, sob uma mesma bandeira e reivindicação: pela ruptura das relações diplomáticas com Israel, pelo fim imediato dos bombardeios e do bloqueio a Gaza e pelo direito do povo palestino a um Estado soberano. Essas são as bandeiras mínimas. Devemos combinar a isso a rejeição ao deslocamento forçado do povo de Gaza. Este é um ponto fulcral das ações de solidariedade internacional, muito além de sua capacidade simbólica. Nosso apoio deve ser prático e politicamente consequente. Estamos diante de uma bifurcação: ou cessam os bombardeios e se estabelecem as condições para a libertação palestina, ou estaremos diante do aprofundamento do genocídio e, no melhor dos casos, de uma nova Nakba, com a diáspora massiva de milhões de palestinos.

Face a isso, é conveniente alertar aquela parte da esquerda que parece patinar nas próprias palavras e pouco propor ou fazer. O próprio governo brasileiro tem sido tratado como "apoiador de terroristas" por parte da direita e da extrema-direita, mesmo denunciando o Hamas frente à ONU, mesmo condenando "as mortes de ambos os lados", mesmo cedendo, por todos os meios, a quem quer estabelecer equivalência entre o jugo da ocupação e do apartheid israelense e a resistência violenta palestina. Esses sucessivos recuos não agregam em nada e, pelo contrário, nos distanciam de qualquer solução que traga a libertação palestina, condição para qualquer paz duradoura e real no território. Parece-nos, então, ser mais pertinente empenhar-se no enfrentamento político, pacientemente desfazendo mitos e denunciando a situação pelo que ela é: genocídio.

Entendemos, é claro, que há, ainda, alguns entre a esquerda, talvez preocupados com as eleições de 2024, que prefiram o silêncio ou a tergiversação. Opor-se aos crimes do Estado de Israel com a contundência que a situação exige, diante da enorme pressão de grupos sionistas e evangélicos, das organizações de direita, da grande mídia e de nossos parceiros comerciais inspiram o temor de baixas eleitorais. A estes talvez falte compreender que a baliza de seu próprio oportunismo eleitoreiro impõe que, para que conquistem as suas “vitórias”, eles abram mão da própria luta e de sua utilidade enquanto sujeitos históricos.

Por sua vez, a direita e a extrema-direita brasileiras têm um lado bem definido: são pela continuidade e avanço da limpeza étnica da Palestina e pela sua subjugação total pelo Estado de Israel. O que se espera e se observa é uma violenta ofensiva para encurralar qualquer posição em defesa da autodeterminação do povo palestino, através dos mais diversos expedientes e mentiras. É um erro contemporizar com a posição deles. Ela é incapaz de trazer qualquer "resolução pacífica" e deve ser exposta por isso. São avalistas do extermínio, do racismo, da ocupação e do apartheid.

Se uns ou outros insistem em acariciar seu senso de moral abstrato lamentando "todas as mortes", prontamente se posicionando "contra o terrorismo do Hamas", se recusando a usar os mesmos critérios - novamente, abstratos - para qualificar o Estado israelense, estes apenas ignoram ou escondem o massacre sendo perpetrado contra o povo palestino. A autoindulgência destes, suas "firmes bússolas morais", só fazem engrossar o coro do discurso oficial de Israel, que justifica o morticínio e a destruição ampla e irrestrita. Enquanto clamam por uma paz abstrata, por uma paz subjugada, a limpeza étnica avança. Que lhes sirva de consolo. Não poderia servir aos palestinos. A Palestina tem pressa.

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