Os tempos estavam mudando:

Os tempos estavam mudando:
Cena do filme A Complete Unknown, dirigido por James Mangold

Arte e política no movimento folk a partir do filme Um Completo Desconhecido, sobre Bob Dylan

Publicado Por Romulo Costa Mattos em 22 de março de 2025

O filme “Um completo desconhecido” (2024), dirigido por James Mangold, trata da carreira de Bob Dylan no período que vai da sua chegada a Nova Iorque à transição ao rock, incluindo as polêmicas surgidas nesse processo. Boa parte da trama é dedicada ao seu envolvimento com a música folk, da qual se tornou o maior expoente, ao conciliar em suas composições protesto político e elaboração poética.

As mais conhecidas canções engajadas do seu repertório são valorizadas na obra cinematográfica, entre elas, “Blowing in the Wind”, que se tornou um hino da luta por direitos civis nos EUA e foi entoada por Peter, Paul and Mary na Marcha sobre Washington (1963); “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, que trata do temor da guerra nuclear; e “Masters of War”, que critica o complexo industrial-militar americano. As composições sobre relacionamentos amorosos interrompidos também estão presentes: “Girl From The North Country”, “It Ain't Me, Babe” e “Don't Think Twice, It's All Right”. Mas foram ignoradas no roteiro as suas significativas composições contra o racismo, como “The Death of Emmett Till”, “The Lonesome Death of Hattie Carrol” e “Only a Pawn In Their Game” (sobre o assassinato de Medgar Evers). Não faltou, é claro, “Like a Rolling Stone”, corretamente tratada como a música-chave dentro de sua virada para a eletrificação sonora, embora seja mais do que isso: além de romper com os padrões mercadológicos por ser uma gravação com seis minutos de duração (que chegou aos primeiros lugares das paradas), “retratava com senso de urgência o estado de confusão em que mergulhava uma geração inteira” (MERHEB, 2012, p. 28).

Se “Blowing in the Wind” foi a primeira grande contribuição de Dylan para o movimento dos direitos civis, ao qual os artistas folk se juntaram, a mais pungente foi “The Times They Are A-Changing", que no filme aparece relacionada com a apresentação solo de Dylan no Newport Folk Festival, realizado entre os dias 26 e 28 de julho de 1963. O conceito de um evento organizado por músicos deu certo e o comprometimento com os direitos civis lhe proporcionou propósito e narrativa. O público de 47 mil pessoas foi a maior multidão reunida até então na cidade de Newport, segundo a polícia. O festival um momento decisivo para a canção folk como uma nova música popular e para o próprio artista em questão, que se tornou o emblema do festival: “a Nação de Newport estava faminta por um novo líder e Dylan foi escolhido por aclamação popular” (SHELTON, 2011, 260).No dia 26 de outubro, ele confirmou o seu status de astro ao fazer um show com lotação esgotada noCarnegie Hall. A edição de 4 de novembro daNewsweektrouxe um artigo sobre o artista, embora em termos pejorativos, tratando-o como um jovem vaidoso, que manipulava a verdade para se promover (SOUNES, 2002: 128, 134-5).

Embora o Newport Folk Festival tenha sido responsável por Dylan ter deixado de ser assunto somente das rodas do underground para se tornar um ídolo reconhecido, o jovem bardo, diferente do que mostra o filme, não cantou “The Times They Are A-Changing" em tal ocasião. Essa foi uma liberdade artística da obra cinematográfica, que dramatiza a importância dessa composição ao inclui-la naquele histórico evento. A passagem tem elementos comoventes porque mostra o público cantando o verso-título, que se repete no refrão, apesar de nunca ter ouvido a composição. Além disso, Pete Seeger, o cantor folk que foi um dos idealizadores de tal edição do festival, sorri de satisfação por testemunhar a comunhão entre Dylan e a plateia, arrebatada pelo protesto político musicado.

Seeger identificava na figura do jovem músico o divulgador que faltava para massificar as bandeiras à esquerda da sociedade americana defendidas pelo movimento folk.Um biógrafo de Dylan afirmou que o seu senso de tempo era “sobrenatural”, uma vez que ele escreveu a citada música um mês e meio antes da morte de John Kennedy – assim como compusera “A Hard Rain’s A-Gonna Fall” com o mesmo período de antecedência em relação à Crise dos Mísseis em Cuba (1962)(EPSTEIN, 2012, p. 132). A morte do presidente dos EUA deprimiu Dylan, mas logo esse descobriu que podia ter empatia por Lee Oswald, apontado pelas investigações como o autor do crime. Em dezembro de 1963, o compositor foi homenageado pelo ECLC –Emergency Civil Liberties Comittee– com o conceituado prêmio Tom Paine, destinado a personalidades que lutassem em prol da justiça social. No jantar de arrecadação de fundos para a entidade, o cantor recebeu vaias e assobios após afirmar se viu um pouco em Oswald. Em entrevista subsequente, repetiu essa ideia e tentou se explicar melhor: “vi nele boa parte da época em que estamos vivendo” (SOUNES, 2002: 135-5). Dylan se preocupava porque o disco The Times They Are A-Changing (1964) sairia apenas 21 dias depois da morte de Kennedy. Um lançamento repleto de protestos potentes e subversivos numa época de tantas tensões o transformaria em um dos principais alvos da direita americana. Embora insistisse que não era um cantor de protesto, as evidências diziam o contrário e por isso era considerado “a voz de uma geração”. A partir desse momento, o artista se afasta cada vez mais dos movimentos políticos e das manifestações públicas, dos quais estava cansado, e as suas composições em que “aponta os dedos” para os culpados dariam lugar a protestos mais sutis (WILLIANSON, 2011, p. 42). Quando a capa da edição universitária da Esquire de 1965 mostrou um desenho com quatro heróis estudantis – Kennedy, Malcom X, Che Guevara e Dylan –, não foi difícil imaginar que o astro musical poderia ter uma morte violenta como os outros três (SHELTON, 2011, p. 286).

The Freewheelin’ Bob Dylan (1963) e The Times They Are A-Changing (1964) são possivelmente os maiores discos de protesto já gravados, mas o segundo deles deve ser tratado como o trabalho político de Dylan, por excelência. As suas letras produzem uma análise penetrante da sociedade dos EUA, sendo capazes de comunicar política progressista através de um meio popular (ROLLASON, 1984: 48, 51).Para uma melhor avaliação da relação de sua música com o contexto em que vivia, é preciso avaliar que na primeira metade dos anos 1960, nos EUA, boa parte dos ativistas da Nova Esquerda cresceu na luta pelos direitos civis e se misturou ao movimento estudantil nas universidades. Em 1962, criou-se no Michigan o SDS – Studantes for a Democratic Society –, que pregava uma nova política e manifestava a desilusão com a sociedade vigente. Anos depois, certos militantes do SDS formariam o Weather Underground, uma organização de esquerda que optou pela luta armada, cujo nome foi inspirado em um verso de Dylan contido em “Subterranean Homesick Blues: “You don't need a weatherman/ To know which way the wind blows” (“Você não precisa do meteorologista/ Pra saber pra onde o vento sopra”). Em 1964, a insatisfação explodiu na Universidade da Califórnia, em Berkeley, tendo nascido dessa experiência o Free Speech Movement, que denunciava o caráter impessoal da universidade e de suas políticas educacionais, tidas como corruptas e segregacionistas. Em relação à questão dos direitos civis, especificamente, organizações a princípio interraciais como a SNCC – Student Nonviolent Coordination Committee (1960) – e o CORE – Congress of Racial Equality (1961) – desenvolviam programas de educação e encorajavam a resistência e a afirmação dos direitos dos negros. A SCLC – Southern Christian Leadership Conference (1957) – era liderada pelo pastor Martin Luther King Jr., que organizou uma manifestação em Alabama, em abril de 1963, cujas cenas de violência contra os negros impactaram os lares americanos. Pouco depois, quando Evans (citado em “Only A Pawn In Their Game”), presidente da NAACP – National Association for the Advancement of Colored People (1909) –, foi assassinado no Mississipi, o governo federal foi obrigado a interferir. Em junho, Kennedy enviou um conjunto de propostas legislativas que combatiam a segregação e a discriminação raciais, além de ter discursado sobre o assunto – embora a Lei dos Direitos Civis tenha virado realidade somente em 1965, durante o governo de Lyndon Johnson. Em 28 de agosto de 1963, ocorreu a passeata em Washington, abordada neste texto, quando 250 mil pessoas fizeram a maior demonstração pelos direitos civis até então (PAMPLONA, 1995: 83-6).

Dylan estava sentado nos degraus do Lincoln Memorial a apenas metros de King quando esse pronunciou o seu célebre discurso “Eu tive um sonho”. “The Times They Are A-Changing" foi composta entre esse evento e o mês de julho do mesmo ano, quando o artista voou até Greenwood, Mississipi, para se apresentar em um comício pelo registro de eleitores negros, ao lado de Seeger, entre outros (WILLIAMSON, p. 42, 2011).Nesse contexto histórico raro, em que a crença no futuro se transformava em experiência coletiva, Dylan realizava conexões ainda mais amplas. Nos anos imediatamente anteriores à gravação de “The Times They Are A-Changing", foram vitoriosas ou iniciadas diversas revoluções de libertação nacional, como a revolução cubana de 1959, a independência da Argélia em 1962 e a Guerra do Vietnã. Elas mostravam ao planeta a rebeldia de povos coloniais e semicoloniais contra grandes potências, em um possível prenúncio dos novos tempos. Essa noção é essencial para a compreensão das lutas e do ideal contestador da década de 1960, que atingiriam o seu auge no ano de 1968 (RIDENTI, 2008: 135). Em 1963, Joan Baez, parceira de shows e divulgadora da obra do compositor nos primeiros tempos, afirmou: “Eu apenas sinto, mas Dylan consegue se expressar. Ele é fenomenal. Suas canções são poderosas como poesia e como música. Bob está expressando o que todos esses jovens querem dizer. Ele fala por mim” (SHELTON, 2011, p. 241).

De acordo com Dylan, “The Times They Are A-Changing" foi influenciada por baladas escocesas e irlandesas (CROWE, 1985). Em tom profético, o narrador oferece aos políticos e aos pais uma chance de juntar ao movimento de mudança, descrito como irreversível: “A praga está rogada”. Em todo caso, afirma que os primeiros devem evitar ficar “parados na porta” para que não “travem o corredor”, enquanto os segundos precisam sair da “nova” estrada, “se não conseguem dar as mãos”. Avisa aos críticos que “a chance não vai voltar”, mas recomenda para não falarem “cedo demais”, pois, com a roda girando, “não há como saber quem ela vai nomear”. Robert Shelton (2011, p. 2003) aponta para o pergaminho bíblico da letra, que refletiria a canção gospel americana. O verso-título de Dylan, que afirma “Porque os tempos, eles estão mudando” se relaciona com a advertência presente em Apocalipse, 1:3: “pois o tempo está próximo”. Já a passagem “Pois o perdedor de agora vai depois vencer” é um eco do livro de Marco: “Mas muitos que são os primeiros serão os últimos, e os últimos, primeiros”. No chamado geral presente na letra, as águas da enchente sobem – “E admitam que as águas/ Em volta de vocês subiram/ E aceitem logo/ Vão estar encharcados até os ossos” – e o Armagedon estaria próximo: “Há uma luta lá fora que está enfurecida” / Ela logo vai sacudir as janelas e balançar as paredes”. Embora a canção também tenha se tornado um hino da juventude, Dylan negou tratar do conflito de gerações, e afirmou que essas foram apenas as palavras que conseguiu encontrar “para separar a vida da morte”, não tendo nada a ver com a idade.

Essa música pode ser entendida como um resumo da atmosfera dos anos 1960, tendo um significado específico no início de tal década, em que se desenvolvia a luta dos negros pelos direitos civis, mas serve como um hino para os oprimidos e alienados de todos os tempos. No entanto, ao longo das décadas de 1990 e 2000, “The Times They Are A-Changin" foi licenciada para uso em campanhas publicitárias de empresas de auditoria e contabilidade, de companhias de seguros e até de bancos canadenses (GRAY, 2006: 152), além de ter integrado a trilha sonora da superprodução hollywoodiana Watchmen (2009), de Zack Snyder. No entanto, Um Completo Desconhecido reconstituiu o sentido original da composição ao grande público, o que é um mérito desse filme que concorreu a oito Oscars, ao tratar de um artista que, por meio de suas canções, dialogava com as transformações mundiais, demonstrava empatia pelo trabalhador comum, mas também produzia sensíveis canções de amor.

The Times They Are A-Changin (Bob Dylan)

Come gather 'round people
(Vem pra cá, pessoal)

Wherever you roam
(Por onde quer que vocês andem)

And admit that the waters
(E admitam que as águas)

Around you have grown
(Em volta de vocês subiram)

And accept it that soon
(E aceitem que logo)

You'll be drenched to the bone
(Vão estar encharcados até os ossos)

If your time to you is worth savin'
(Se vocês acham que vale a pena salvar o seu tempo)

And you better start swimmin' Or you'll sink like a stone
(Então é melhor começar a nadar pra não afundar como pedra)

For the times they are a-changin'
(Porque os tempos, eles estão mudando)

Come writers and critics
(Venham, autores e críticos)

Who prophesize with your pen
(Que profetizam com a pena)

And keep your eyes wide
(E que fiquem de olhos abertos)

The chance won't come again
(A chance não vai voltar)

And don't speak too soon
(E não falem cedo demais)

For the wheel's still in spin
(Pois a roda ainda gira)

And there's no tellin' who that it's namin'
(E não há como saber quem ela vai nomear)

For the loser now will be later to win
(Pois o perdedor agora vai depois vencer)

For the times they are a-changin'
(Porque os tempos, eles estão mudando)

Come senators, congressmen
(venham, senadores, deputados)

Please heed the call
(Por favor ouçam o chamado)

Don't stand in the doorway
(Não fiquem parados na porta)

Don't block up the hall
(Não travem o corredor)

For he that gets hurt
(Pois quem for ferido)

Will be he who has stalled
(Será quem tiver demorado)

The battle outside ragin'
(Há uma luta lá fora que está enfurecida)

Will soon shake your windows and rattle your walls
(Ela logo vai sacudir as janelas e balançar as redes)

For the times they are a-changin'
(Porque os tempos, eles estão mudando)

Come mothers and fathers
(Venham mães e pais)

Throughout the land
(De todo o país)

And don't criticize
(E não critiquem)

What you can't understand
(O que vocês não entendem)

Your sons and your daughters
(Seus filhos e filhas)

Are beyond your command
(Não vão mais obedecer)

Your old road is rapidly agin'
(Sua velha estrada envelhece veloz)

Please get out of the new one if you can't lend your hand
(Por favor saiam da nova se não conseguem dar a mão)

For the times they are a-changin'
(Porque os tempos, eles estão mudando)

The line it is drawn
(A linha está traçada)

The curse it is cast
(A praga está rogada)

The slow one now
(A lenta, agora)

Will later be fast
(Será mais tarde acelerada)

As the present now
(Enquanto o presente agora)

Will later be past
(Depois será o passado)

The order is rapidly fadin'
(A ordem está se apagando rapidamente)

And the first one now Will later be last
(E o primeiro agora vai depois ser último)

For the times they are a-changin'
(Porque os tempos, eles estão mudando)


Bibliografia

CROWE, Cameron. [Notes and texts]. In: DYLAN, Bob.Biograph. New York: Columbia Records, 1985.

EPSTEIN, Daniel Mark.A Balada De Bob Dylan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

GRAY, Michael.The Bob Dylan Encyclopedia. New York, London: Continuum International, 2006.

MERHEB, Rodrigo.O som da revolução: uma história cultural do rock. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

PAMPLONA, Marco A.Revendo o sonho americano: 1890-1972. São Paulo: Atual, 1995.

RIDENTI, Marcelo. “1968: rebeliões e utopias”. In: FILHO, Daniel Aarão Reis Filho, FERREIRA, Jorge, ZENHA, Celeste.O Século XX.O Tempo das Dúvidas. Do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

ROLLASON, Christopher. Bob Dylan: do radicalismo à reacção.Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 13, 1984.

SHELTON, Robert.No direction home– a vida e a música de Bob Dylan. São Paulo: Editora Lafonte, 2011).

SOUNES, Howard.Bob Dylan: a biografia. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

WILLIAMSON, Nigel. O Guia do Bob Dylan. São Paulo: Aleph, 2011.

Receba no seu e-mail