Pagu contra os burocratas do partido
Por Carolina Freitas, em 14 de janeiro de 2024
“A burocracia pode produzir burocratas e lacaios servis, nunca revolucionários” (Patrícia Galvão, “Carta de uma militante”, fevereiro de 1939).
“No partido que nasce, a ação desvairada dos puros, das “Antígonas” irredutíveis é preponderante, mas à proporção que cresce e se fortalece, o partido vê-se dominado e burocratizado pelos realistas, pelos “Creóns”, que sabem sobrepor à mística negativa e “estéril” uma ação positiva, política, “utilitária”. À poesia dos puros, contrapõe-se a eficiência dos políticos e uma barreira intransponível ergue-se entre as duas tendências (Sérgio Millet, Prefácio de “A Famosa Revista”, agosto de 1945).
“Sete homens nos diversos planos do palco. O professor falava: — Sim, os sete pecados capitais: desobediência, rebeldia, pusilanimidade, negligência, hesitação, traição (aqui engrossou a voz, depois afinou no último pecado)… e sátira. Todos de acordo”. (Patricia Galvão e Geraldo Ferraz, “A Famosa Revista”, p. 79).
O anúncio de tributo a Patrícia Galvão, a Pagu, na última edição da Festa Literária de Paraty, parece não ter repercutido. Pagu na FLIP “flopou”, como se diz. Não gerou adesão no evento, nem na imprensa, afora uma reportagem ou outra nos grandes jornais. Mas, em vez de indignação com o tributo desacertado da Feira, com a audiência aquém da personagem, penso que o evento e sua diligência “esclarecida” não devem mesmo responder qualquer expectativa ou comoção com o exercício da memória dessa militante e escritora revolucionária ao passar das gerações da esquerda brasileira. Quem deve lembrar Pagu somos nós, pois dela – militantes que se identificam com o comunismo, o marxismo, o trotskismo – também viemos.
Escrevo porque torço, enfim, para que a alcunha torpe e injusta de “musa do modernismo” seja oportunamente jogada no lixo e que a dirigente política e intelectual seja enxergada para além da misoginia rasteira que ainda nubla a sua múltipla contribuição. Esta é a razão cabal para reencontrarmos Pagu: ela foi uma espécie de “combo” existencial para lá de particular da história do pensamento e da ação política revolucionária no Brasil. Certamente suas experiências podem inspirar nossas lutas.
Vou lembrar, nesse pequeno comentário, de uma obra pouco conhecida, A Famosa Revista, romance escrito por Pagu e seu companheiro, Geraldo Ferraz, em 1945. Ela havia rompido sua militância política com o Partido Comunista Brasileiro depois de uma dura prisão em 1939. Nesse livro, a tal “Famosa Revista” é exatamente uma metáfora do PCB. A obra é um certo avesso do sentido de Parque Industrial, romance escrito em 1933 pelo qual Pagu é geralmente reconhecida.
Este primeiro livro é marcado pela sua experiência inicial no Partido, a partir da greve dos estivadores em Santos, em 1931, quando é presa pela primeira vez, numa situação política atravessada pelo fascismo na Europa e o varguismo no Brasil. Publicado sob o pseudônimo Mara Lobo, o livro grafa o início do movimento do romance proletário como gênero literário nacional. Pela primeira vez, há um sujeito coletivo como personagem – mulheres e homens trabalhadores em luta – numa nova linguagem experimental orientada pela forma-panfleto.
O contexto da repressão do Estado às greves, perseguições e deportações como descrição literária do varguismo não anulam o otimismo com a organização partidária que Pagu explicitamente enreda, refletindo muito propriamente a política do terceiro período da III Internacional à época, que previa a radicalização e a generalização de movimentos de tomada de poder mundo afora no contexto da crise econômica mundial desencadeada em 1929.
A Famosa Revista, ao contrário do primeiro texto candorosamente militante, é um livro melancólico, escaldado pela experiência da sua expulsão do Partido. É também, no âmbito da história do amor intermitente de um casal, uma espécie de depoimento surrealista e ficcional sobre o sofrimento militante de romper politicamente com o partido, o que Pagu e Geraldo Ferraz explicam já no seu parágrafo de abertura:
Esta é a História de amor de Rosa e Mosci: o protesto e a pedrada à voragem que proscreveu o amor. Quiséramos páginas claras de vida, cristalizadas à margem de um tempo achatado em planícies cortadas por trechos pantanais. Cristalizadas, irredutíveis. Na verificação, porém dos dados do drama protesto e a pedrada dirigidos à voragem passaram pela provas ásperas e amargas e nas asas do sonho ficaram feridas e chagas, manchas e cicatrizes (Galvão e Ferraz, 1959, p. 111).
A militante Rosa opta pelo partido a Mosci, separando-se dele, já afastado da atividade da organização. Mas voltam a estarem juntos no momento em que Rosa é reencontrada por ele, depois de um longo desaparecimento devido ao trabalho incessante na Revista. Muito da descrição sobre a penúria da militante Rosa perante a direção da Revista reflete uma crítica realista e empiricamente pessoal de Pagu sobre a direção stalinista do PCB. São vários os aspectos levantados pelas personagens que representam os funcionários dirigentes e intermediários do partido.
A aplicação esquemática de uma linha política que não era afeita ou não particularizada à situação da luta de classes em cada lugar cunhou muito a história da direção de Moscou na Internacional Comunista voltada aos PCs latinoamericanos na época e isso marca uma série de passagens no livro: “Rosa se irritava. Para que aquela proposta controvérsia sem sentido entre três pessoas a respeito de um plano estabelecido pela direção da Revista e que seria sem dúvida posto em prática aprovassem ou não o que estava traçado?” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 118). Qualquer mudança abrupta na linha política também devia ser obedecida sem grandes questionamentos entre os funcionários da Revista, “unanimemente aprovada, cegamente aceita”, pois “os grandes acionistas sabiam o que estavam fazendo” (Galvão e Ferraz, 1959, p. 178).
O centralismo burocrático da direção da Revista, o controle sobre opiniões dissidentes e o monitoramento do comportamento de militantes também é trazido à baila em passagens diversas do livro. Esse assunto é delicadamente importante para a trajetória política de Pagu, que sempre foi alvo de acusações dos dirigentes do PCB pela sua origem social, sua produção intelectual prolífera e seu vínculo pessoal e artístico com Oswald de Andrade. É curioso como a narração nos leva a cenas diversas de constrangimento das instâncias superiores sobre certos funcionários, que só poderiam garantir promoções e êxitos internos segundo sua adequação, bajulamento e intimidade quase familiar com os chefes.
Aliás, diga-se de passagem, parecer uma grande família ou um sólido grupo de amigos segue afetando em demasia os pequenos agrupamentos políticos pretensamente radicais, despreocupados com seus próprios arranjos camarilhescos até hoje. Nunca esquecerei a sensação de ler o livro e ter uma recordação imediata e bem vívida de uma dirigente política da organização que eu fazia parte dizer para mim: “se você topasse passar as férias com a gente, não teria rompido”.
Mas voltando. Outra questão valiosa trazida ao romance é a simbolização da perseguição ao trotskismo por meio da obrigação do giro de proletarização militante pelo qual os elementos “pequeno-burgueses” e non gratos seriam substituídos nos órgãos dirigentes. A orientação stalinista do PCB pôde varrer de suas fileiras quadros como Mario Pedrosa e Lívio Xavier, e mesmo afastar e ostracizar intelectuais como Astrojildo Pereira e Octávio Brandão. A partir da corrosão da participação internacional de Mario Pedrosa pelo PCB por suas posições divergentes das orientações da IC, militantes intelectuais e operários que questionavam essas orientações, referenciados em Pedrosa, se alinharam à Oposição de Esquerda Internacional dirigida por Leon Trotsky contra as direções stalinistas mundo afora, fundando no Brasil o fracionado agrupamento Grupo Comunista Lenine em 1929, transformado em Liga Comunista do Brasil em 1930 e, depois, a Liga Comunista Internacionalista (LCI), em 1933.
O documento “Esboço de Análise da Situação Brasileira”, partindo da revolução burguesa de 1930 para explicar a particularidade da formação brasileira, se contrapõe à nevralgia da tese etapista da direção do PCB. Este rico registro é provavelmente a primeira peça diretamente inspirada pela motivação teórica estratégica da lei do desenvolvimento desigual e combinado, formulada por Trotsky. Pagu, ao romper com o PCB, une-se a Mario Pedrosa numa profícua colaboração no jornal Vanguarda Socialista entre 1945 e 1946.
A respeito desse encontro entre dois grandes pensadores e intelectuais brasileiros da política e da arte, vale recordar também a consonância não fortuita entre a crítica à estética do realismo socialista feita por Pagu ao satirizar os personagens burocratas de A Famosa Revista e a interlocução do seu trabalho e da crítica literário de Pedrosa com André Breton e Trotsky no Manifesto por uma arte revolucionária independente. Como pregava um certo funcionário da Revista na trama, “Às vezes, em literatura, em arte [...] trata-se de coisas completamente abstratas, uma espécie de ópio… como se disse uma vez da religião, sim, precisamente. E nosso trabalho é mais concreto, por assim dizer” (p. 21). Pagu e Geraldo Ferraz lançam mão de uma linguagem experimental surrealista no livro no qual a forma literária e o conteúdo da crítica política ao stalinismo se conformam dialeticamente. Há uma criação inovadora em termos literários que é a resposta que Pagu encontra para o seu trauma militante.
Seu trauma não é niilista nem derrotista, é uma experiência de violência elaborada e criticada por ela como dever da mais primordial das suas várias facetas: a de uma mulher comprometida com a revolução e todo e qualquer dos seus sentidos possíveis.
Referências
CAMPOS, A. Pagu vida e obra. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
GALVÃO, P. e FERRAZ, G. A Famosa Revista. In: Dois Romances: Doramundo e A Famosa Revista. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959, pp. 101-274.
GALVÃO, P. Paixão Pagu a autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de Janeiro: Editora Agir, 2005.
___________ Parque Industrial. São Paulo: José Olympio, 2006.