Repressão ditatorial e luta política em 'Ainda Estou Aqui'

Repressão ditatorial e luta política em 'Ainda Estou Aqui'
Salvador Dalí, Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo (1943).

Publicado por Romulo Mattos em 05 de dezembro de 2024.

O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles Jr., trata do assassinato de Rubens Paiva, perpetrado por agentes da ditadura militar, e da luta de sua companheira, Eunice Paiva, pelo direito à verdade. Deputado federal eleito em 1962 pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o personagem histórico interpretado por Selton Mello teve o seu mandato cassado em abril de 1964, mas antes auxiliou a fuga do Consultor-Geral da República, Waldir Pires, e do Chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro. Refugiou-se na Embaixada da Iugoslávia e retornou de surpresa ao Brasil meses depois, em um voo para Buenos Aires com escala em São Paulo, onde desceu sob a alegação de que compraria um maço de cigarros. Foi capturado por homens do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), em janeiro de 1971, e levado para a 3a Zona Aérea (3ª ZA), no Centro do Rio de Janeiro, sendo acareado com duas mulheres que haviam voltado de Santiago do Chile, após terem visitado parentes próximos que estavam exilados nesse país. Uma delas trazia a carta escrita por uma pessoa implicada no sequestro do embaixador americano, Charles Elbrick, endereçada ao ex-político, que foi erroneamente associado pelos militares aos guerrilheiros do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8). Rubens Paiva foi morto no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do I Exército, na Tijuca, Zona Norte do Rio, em decorrência de torturas. Em resposta ao habeas corpus impetrado pelo advogado Lino Machado, o general Carlos Alberto Cabral Ribeiro informou oficialmente que Rubens Paiva havia fugido com a ajuda de possíveis “terroristas” quando estava sendo transferido para depor (RODAS, 2024).    

A relevância social dessa obra cinematográfica é pronunciada por tratar do terrorismo de Estado comandado pelos oficiais militares e da resistência dos familiares dos desaparecidos políticos - mas ela tem destacados predicados estéticos. A primeira parte do filme é predominantemente leve e mostra de forma solar o cotidiano dos Paiva, que moram à beira mar, na Av. Delfim Moreira, no bairro do Leblon, Zona Sul carioca. A vida do chefe de família, de sua esposa (soberbamente interpretada por Fernanda Torres), e dos cinco filhos do casal - Vera, Marcelo, Eliana, Ana Lúcia e Maria Beatriz - é retratada por meio de banhos de mar, esportes na areia, festas caseiras, recepções a amigos diletos, passeios de carro animados pelo fumo de cannabis (no caso da filha mais velha, maior de idade), interesses românticos juvenis e passagens que caracterizam uma realidade doméstica harmoniosa e repleta de atos carinhosos. O diretor foi amigo de uma daquelas meninas e fez questão de passar aos espectadores o clima positivo da casa que ele frequentou. Nessa seção inicial, predomina o bom humor, que, de vez em quando, é suspenso por amostras da tensa realidade social brasileira, como a notícia do sequestro do embaixador suíço no telejornal, a ocorrência de conversas entre adultos que comentam a política nacional e a prática violenta de batidas pelos “gorilas” contra a juventude universitária.   

A segunda parte do material fílmico expande aquilo que era o contraponto à leveza narrativa dominante. O elemento de virada é a repentina captura de Rubens Paiva por agentes repressivos, que o levam para o interrogatório, momento a partir do qual a sua companheira assume definitivamente o protagonismo da história. Agora as imagens não são mais ensolaradas: a casa dos Paiva é tomada pela escuridão relacionada com as janelas cerradas e o Morro Dois Irmãos, que adorna a paisagem da Praia do Leblon, aparece no primeiro plano da tomada de um tempo nublado. Esse cuidado estético integra o conjunto de sutilezas de um drama biográfico sensível, emocional e que optou por evitar a promoção de cenas explícitas de violência (a menção à tortura está nos gritos de prisioneiros e nas manchas de sangue no chão do recinto militar, que é lavado coletivamente por recrutas). A narrativa do filme tematiza a ausência de Rubens Paiva por meio do acúmulo de tensão proporcionado pela inexistência de notícias e pela maneira com que Eunice Paiva sutilmente lida com as expectativas dos filhos (agora sob sua exclusiva tutela), os telefonemas recebidos, as negociações com os credores, as tratativas com as fontes de informações, as possibilidades de atuação na esfera judicial etc. Em certos casos, ela precisa esconder a verdade, em outros, o compartilhamento da realidade exige um pacto silencioso. A revelação da morte do chefe de família à protagonista, feita por um amigo inserido numa rede subterrânea de solidariedade a presos e exilados políticos (da qual Rubens Paiva fazia parte), é apresentada de forma indireta, sem a valorização do ato da transmissão da mensagem em si (e da consequente reação da mulher). Essa cena preza mais o diálogo sobre a elaboração de estratégias para que o direito à verdade seja garantido àquela viúva não reconhecida na lei, a qual decide continuar a busca pelo companheiro, embora omitindo o conhecimento de seu óbito.  

Salvador Dalí, A metamorfose de Narciso (1937).

O filme apresenta densidade dramática e contribui para tematizar a covardia e a perversidade típicas da caserna. Chama a atenção a violação do domicílio dos Paiva pelos agentes do Cisa, que mantém a família detida, e a inclusão de parentes da pessoa investigada no interrogatório. Eliana, de 15 anos, é capturada junto com a mãe, que fica desestabilizada tanto pela  ausência de notícias sobre a adolescente, quanto em função da ameaça velada do interrogador que menciona a rotina dos Paiva - com o requinte de incluir em suas observações a filha de 18 anos, enviada a Londres pelos pais, para evitar o seu possível envolvimento com a política de oposição (tendo em vista que ela estava próxima de cursar a universidade). O livro Infância Roubada, organizado por Tatiana Merlino (2014, p. 161-9), e publicado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, traz o depoimento de Eliana, que passou 24 horas encapuzada, foi chamada de comunista, levou cascudos na cabeça e apertões nos seios. O trabalho demonstra um procedimento padrão da ditadura envolvendo as crianças, que podiam ser banidas, ficar presas com os pais, ser torturadas na frente das mães (e vice-versa) ou ter a própria vida ameaçada. Há ainda o relato do caso de uma recém-nascida que foi devolvida com atraso à família porque os militares  não conseguiram encontrar algemas que coubessem na bebê. Caracterizadas como “miniterroristas”, essas crianças eram fichadas pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).   

Eunice Paiva ficou 12 dias presa em uma cela individual. A sua trajetória tem muito a dizer sobre as prisões e os desaparecimentos promovidos pela ditadura. O filme avança no tempo para mostrar que a certidão de óbito de seu ex-companheiro foi finalmente emitida em 1996, devido à Lei dos Desaparecidos Políticos no Brasil, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, no ano anterior. E assim a viúva agora legalmente reconhecida manifestou o “estranho sentimento” de alívio ao obter esse documento, 25 anos depois da morte de Rubens Paiva. A obra cinematográfica trata essa passagem como uma vitória, comemorada em evento familiar, o que é justo. Mas vale ressalvar que, se a lei 9.140, de 1995, garante aos familiares o reconhecimento pelo Estado brasileiro de sua responsabilidade no assassinato de guerrilheiros e opositores políticos, ela apresenta a contradição de exigir que os solicitantes comprovem a falsidade das versões oficiais (como a suposta fuga de Rubens Paiva, mas também os muitos atropelamentos, suicídios e mortos em confronto fictícios) - e isso ocorreu devido à forte resistência de setores que consideravam a exigência de apuração e punição como “revanchismo”. Para os afetados, a reparação econômica era menos importante do que a reparação moral e a reconstrução da memória (ou seja, o esclarecimento das mortes e desaparecimentos), mas a primeira opção foi a única que obteve êxito, uma vez que poderia substituir o reconhecimento social e público dos crimes cometidos pela ditadura (BAUER, 2014, 160-2). É interessante notar que Eunice Paiva tenha acionado a lei para conseguir a tal certidão, mas não para pleitear a indenização econômica: preferiu processar a União, que foi condenada a pagar R$ 750 mil a sua família, em 1998, enquanto receberia no máximo R$ 100 mil caso tivesse aceitado os termos do governo, pois teria de abrir mão de qualquer outro valor (GRILLO, 1998). 

A história da matriarca leva ao entendimento da capacidade de reinvenção dos parentes das vítimas do terrorismo de Estado. O filme expõe como Eunice Paiva precisa tomar drásticas decisões na esfera familiar, como a de alugar a casa para um restaurante e se mudar para São Paulo com os cinco filhos acostumados ao estilo de vida à beira-mar (para contar com o auxílio da mãe) e a de cursar Direito e se tornar professora universitária, além de desenvolver trajetória no ativismo social. Nas passagens sobre a vivência dos Paiva na metrópole nacional já é possível notar a volta da iluminação na fotografia do filme, de forma a simbolizar uma reconstrução, um recomeço – convém assinalar que esse enfoque de gênero promovido na obra vai ao encontro dos recentes avanços da historiografia no campo dos estudos sobre a ditadura.  

Por todos esses motivos, o filme de Walter Salles Jr. resiste às lamentáiveis tentativas de deslegitimá-lo por meio da afirmação de que o diretor, o terceiro mais rico do mundo entre os colegas de profissão, é filho de um renomado banqueiro - que como tal lucrou e sustentou o Estado de exceção que durou 21 anos. O determinismo um tanto grosseiro desse tipo de abordagem, por um lado, desconsidera a análise do seu projeto artístico como um todo, em que é evidente a construção de um olhar sensível e respeitoso em relação ao drama social dos pobres no Brasil, quando não a simpatia em relação a personagens que são símbolos da luta armada latino-americana (mais uma vez evitando o panfletarismo raso, ao escolher tratar da tomada de consciência do jovem estudante de medicina Ernesto Guevara, antes de se tornar o conhecido revolucionário Che). Por outro, não concede um átomo de autonomia para a obra perante a história familiar do autor, o que, em termos de análise cultural, é questionável. Talvez o maior equívoco seja não enxergar a importância de Ainda Estou Aqui na conjuntura atual, em que o revisionismo e até mesmo o negacionismo sobre a ditadura vêm ganhando espaço com a ascensão política da extrema-direita fascista no Brasil. Trata-se de um tema fundamental dentro do ideário dos partidários desse espectro político e desassociar o filme da disputa por essa memória não seria uma atitude razoável.  

Esse grande sucesso público, que superou a marca de 2 milhões de espectadores nos cinemas, veio à tona no momento em que as investigações da Polícia Federal comprovam um malogrado plano militar para (mais um) golpe de Estado, que incluía o assassinato do presidente eleito (associado ao comunismo nas requentadas narrativas da caserna), do seu vice e de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Assim como na ditadura os oficiais militares não poupavam a vida de um ex-político adepto da conciliação de classes - que trabalhava como engenheiro civil e era proprietário de uma empresa desse setor (especialmente lucrativo naqueles anos devido ao incentivo governamental) -, os novamente empoderados milicos de hoje podem conceber a eliminação de um estadista na prática limitado a uma gestão de redução de danos, um conservador membro da Opus Dei que tempos atrás era o candidato nacional do partido da burguesia e um magistrado que chegou ao topo de sua carreira por ser o homem de confiança de um usurpador da faixa presidencial (consentido nessa função para acelerar o ritmo das contrarreformas sociais).  

Essa consideração, exposta no parágrafo anterior, tem a validade adicional de relativizar possíveis descontentamentos com a suposta falta de representatividade de moradores do Leblon como protagonistas de um material fílmico sobre a repressão ditatorial - que desde o início foi brutal contra os seus inimigos, fossem eles reformistas ou revolucionários. Caracterizando uma tomada de posição, o diretor verbaliza a ausência de punição aos agentes de Estado que cometeram crimes contra os direitos humanos, o que conecta essa história aos dias de hoje. Quando a arte consegue comunicar sobre os golpismos e as decorrentes truculências políticas do passado e do presente, sem perder a sua expressão, podemos aplaudi-la sem tergiversação (conforme as plateias têm se comportado ao fim das sessões, nos cinemas). 

Referências 

BAUER, Caroline Silveira. Quanta verdade o Brasil suportará? Uma análise das políticas de memória e de reparação implementadas no Brasil em relação à ditadura civil-militar. Dimensões, Vitória, v. 32, 2014. 

GRILLO, Cristina. Família de Rubens Paiva ganha indenização. Folha de SP, São Paulo, 19 de set. 1998. 

MERLINO, Tatiana (org.). Infância Roubada, Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: ALESP, 2014.

RODAS, Sérgio. Advogado questionou desaparecimento de Rubens Paiva, mas militares mentiram sobre morte. Consultor Jurídico, São Paulo, 5 de dez. 2024. 

Receba no seu e-mail