Stalin entregou centenas de comunistas a Hitler

Durante a década de 1930, inúmeros comunistas e socialistas da Alemanha e Áustria se refugiaram dos nazistas na URSS. Mas, em uma traição chocante, a polícia secreta soviética entregou centenas deles à Gestapo de Hitler.

Stalin entregou centenas de comunistas a Hitler
Caricatura no jornal semanal "Mucha", de Varsóvia, em 8 de setembro de 1939, já com a invasão Nazi em andamento.

Por Alex de Jong*, em 22 de agosto de 2021, na Jacobin.com

Tradução de Aldo Cordeiro Sauda

A constituição da União Soviética de 1936 concedeu “o direito de asilo aos cidadãos estrangeiros perseguidos por defenderem os interesses dos trabalhadores”. Porém, a quebra dessa promessa pelas autoridades soviéticas ao entregarem centenas de exilados alemães e austríacos às mãos dos nazistas a partir do final da década de 1930 foi vergonhosa. As vítimas incluíam revolucionários veteranos, comunistas judeus e militantes antifascistas.

Uma das deportadas foi a comunista alemã Margarete Buber-Neumann. Sua biografia, publicada em 1949 em inglês com o título Sob Dois Ditadores: Prisioneira de Stalin e Hitler, ao que tudo indica, é o relato mais conhecido de uma das deportadas. Buber-Neumann descreveu o momento em que as autoridades soviéticas a transferiram para a custódia nazista junto a outras vinte e nove pessoas:

Enfim o trem parou, e pela última vez ouvimos o grito familiar: “Preparem-se. Com suas coisas.” As portas do compartimento foram destravadas... a estação estava ao lado. Vimos o nome na sinalização de uma placa: Brest-Litovsk.

Buber-Neumann ainda se recordava ter visto um grupo de homens da polícia secreta soviética – a NKVD, em geral conhecida por seu nome antigo, GPU – atravessar a ponte para o território alemão retornado pouco tempo depois: “Estavam acompanhados por oficiais da SS. O comando da SS e o chefe da GPU trocaram saudações.” O comandante soviético começou a ler os nomes dos prisioneiros:

Um deles era um emigrante judeu da Hungria, outro era um jovem trabalhador de Dresden, envolvido em um enfrentamento contra os nazistas em 1933, cujo resultado foi a morte de um dos nazis. Ele conseguiu escapar para a Rússia Soviética. Durante o julgamento, seus colegas o incriminaram, sabendo, ou melhor, imaginando, que ele estava seguro na União Soviética. Seu destino estava dado.

Buscando refúgio de Hitler

Nascida em 1901, Buber-Neumann juntou-se à juventude comunista alemã em 1921 e ao seu partido principal, o KPD, cinco anos depois. A partir de 1928 trabalhou para o jornal da Internacional Comunista, Inprekorr. Lá ela conheceu Heinz Neumann, membro da direção do KPD, com quem se juntou. Depois que os nazistas tomaram o poder em Berlim, ambos procuraram refúgio na União Soviética.

Mas os expurgos desencadeados por Joseph Stalin ao final da década de 1930 transformaram a URSS em um lugar mortal para os comunistas alemães. O NKVD prendeu Heinz Neumann com acusações forjadas de espionagem, executando-o em 26 de novembro de 1937. Eles também prenderam Margarete Buber-Neumann e a deportaram, mais tarde, para a Alemanha nazista em 1940.

Diversos grupos diferentes de cidadãos alemães viviam na União Soviética naquela época. Alguns estavam lá para trabalhar. Muitos nesta categoria eram simpatizantes do comunismo, nem sempre com filiação ao partido. Existiam também os exilados políticos, os comunistas e outros antifascistas, incluindo os austríacos, transformados em cidadãos alemães após a anexação da Áustria pelos nazistas em 1938. Outros adquiriram a cidadania soviética.

As informações sobre o destino dessas pessoas estão espalhadas por vários arquivos, alguns ainda inacessíveis aos pesquisadores. É, portanto, difícil ter certeza de quantas pessoas sofreram o mesmo destino de Buber-Neumann. A estimativa conservadora é que mais de 600 foram deportados ou expulsos.

O destino de Franz Koritschoner

Os exilados enviados à Alemanha nazista incluíam veteranos do movimento comunista, como Franz Koritschoner. Nascido no império austro-húngaro em 1892, este jovem socialista judeu tinha se oposto ao apoio dado pelos social-democratas à guerra depois de 1914. Em 1916, Koritschoner conheceu Vladimir Lenin durante a Conferência de Kienthal, uma reunião de socialistas revolucionários antiguerra.

Koritschoner desempenhou um papel de direção nas greves e protestos austro-húngaros de janeiro de 1918. No mesmo ano, juntou-se ao recém-criado Partido Comunista da Áustria (KPÖ). Koritschoner editou o jornal do KPÖ, traduzindo as obras de Lenin, que se dirigia a ele como um “querido amigo”. De 1918 a 1924, Koritschoner integrou o comitê central do KPÖ.

Ao final da década de 1920, mudou-se à União Soviética para trabalhar com a Internacional Vermelha dos Sindicatos Trabalhistas (Profintern), ingressando no Partido Comunista da União Soviética em 1930. O NKVD prendeu Koritschoner em 1936, acusando-o de contrarrevolucionário. Ele foi entregue pelas autoridades soviéticas à Gestapo em abril de 1941.

Sabemos um pouco das últimas semanas de vida de Koritschoner por ele ter dividido sua cela com Hans Landauer, membro das Brigadas Internacionais que sobreviveu à guerra. Segundo Landauer, Koritschoner estava abalado e enfraquecido, com cicatrizes da tortura em suas mãos pelo NKVD e a Gestapo. Não tinha mais dentes, afirmou a Landauer que os perdeu por causa do escorbuto em um campo de trabalhos forçados no extremo norte soviético. Em 7 de junho de 1941, os nazistas enviaram Koritschoner para Auschwitz, onde ele foi morto dois dias depois.

Traição do Schutzbündler

Os expurgos que varreram a União Soviética sob o governo de Stalin atingiram círculos cada vez mais amplos. Um grupo de vítimas foram os antigos membros do partido austríaco Schutzbund, ou Liga de Defesa Republicana, a ala paramilitar do Partido Social Democrata Austríaco.

Em 4 de março de 1933, o chanceler da Áustria, Engelbert Dollfuß, suspendeu o parlamento e instaurou um regime fascista. Em fevereiro de 1934, membros da Schutzbund pegaram em armas contra o novo sistema, mas não foram páreos para o armamento pesado do exército austríaco. Cerca de duzentos perderam a vida nos combates ou foram executados de forma sumária.

O movimento comunista comemorou a resistência da Schutzbund, com a União Soviética lhes oferecendo asilo. Muitos membros da Schutzbund, decepcionados com a falta de militância da social-democracia diante do fascismo, aderiram ao Partido Comunista. Cerca de 750 Schutzbündler exilaram-se na URSS.

No entanto, apenas alguns anos mais tarde, foram alvo de perseguição pelo passado social-democrata. Enquanto cerca de metade deixou a União Soviética, a maior parte dos Schutzbündler restantes foram vítimas dos expurgos. O NKVD deportou muitos dos que sobreviveram para a Alemanha nazista.

Em um grupo de vinte e cinco pessoas deportadas, transferidas em dezembro de 1939, dez delas vinham do Schutzbund. Um deles era Georg Bogner. Ele lutou durante o levante de fevereiro de 1934 em sua cidade natal, Attnang-Puchheim, antes de fugir para a União Soviética. A polícia secreta soviética prendeu Bogner em 1938. Ao final de dezembro de 1939, ele estava em uma detenção do serviço de inteligência alemão, o Sicherheitsdienst, em Varsóvia. O que aconteceu com ele a depois é desconhecido.

Antes do Pacto

Em agosto de 1939, a União Soviética assinou um pacto de não-agressão com a Alemanha nazista. Uma semana depois, a Wehrmacht invadiu a Polônia. Em seguida, as forças soviéticas atacaram o país pelo leste. Antes do fim dos combates, os dois governos assinaram o “Tratado de Fronteira e Amizade Germano-Soviético” em setembro daquele ano.

O acordo trazia formulações para além de uma promessa mútua de não agressão: as partes comprometeram-se a não apoiar uma coligação dirigida contra a outra e a trocar informações “relativas a interesses mútuos”. Havia também protocolos secretos adicionados aos tratados pelos quais Moscou e Berlim dividiram o território dos Estados Bálticos e da Polônia entre si. A admissão oficial soviética da existência destes protocolos ocorreu apenas em 1989.

Muitos tratam a deportação dos antifascistas à Alemanha nazista como algo associado ao tratado de amizade. Margarete Buber-Neumann interpretou-os assim, como “um presente de Stalin a Hitler”, outros escritores também usaram essa mesma metáfora. Contudo, a ligação entre as deportações e o pacto parece menos direta que sugerido.

A União Soviética já havia deportado presos antifascistas para a Alemanha nazista antes da assinatura do pacto. Em 1937-38, cerca de sessenta exilados, entre eles judeus e comunistas, foram deportados. Entre os deportados estava um jovem chamado Ernst Fabisch.

Nascido em Breslau, 1910, em uma família judia, Fabisch ingressou no Partido Comunista da Alemanha (Oposição), ou KPO, aos dezenove anos. Liderado por Heinrich Brandler e August Thalheimer, o KPO era uma corrente comunista que integrava a chamada “Oposição de Direita” no movimento, associada a políticos soviéticos como Nikolai Bukharin, o último grande rival de Stalin. Rejeitavam a hostilidade sectária do KPD junto aos social-democratas e outros socialistas, defendendo a unidade contra o fascismo.

Após as prisões dos principais membros do KPO pelos nazistas em 1933, Fabisch juntou-se à nova direção clandestina, dos quais muitos foram presos depois, em 1934. Ele escapou para a União Soviética, mas logo depois estava mais uma vez em perigo. O NKVD prendeu Fabisch em 1937 e deportou-o para a Alemanha no ano seguinte. A Gestapo prendeu Fabisch logo em seguida. Ele foi morto em Auschwitz em 1943.

Padrões de Cumplicidade

A ausência de uma fronteira direta ligando a União Soviética à Alemanha nazista nesta época levou as respectivas autoridades a coordenarem as viagens dos presos entre ambos estados. As autoridades soviéticas entregavam passes de viagem válidos apenas até a Alemanha, enquanto informavam seus homólogos nazistas sobre os nomes e antecedentes dos deportados. Essas fichas, que estão hoje nos arquivos da embaixada alemã e do Ministério das Relações Exteriores, são fonte importante de informação sobre as vítimas.

As deportações não começaram com a assinatura do Pacto Hitler-Stalin e a divisão da Polônia, e o destino desses presos não parece ter integrado as discussões entre Moscou e Berlim. No entanto, o número de deportações aumentou a partir daquele momento.

A maioria dos deportados neste período eram exilados políticos, refletindo o perfil dos alemães e austríacos ainda na União Soviética durante esta fase. Às vezes, as autoridades alemãs solicitavam a deportação de determinados indivíduos. Outras vezes, porém, os nazistas não pareciam muito interessados nos deportados.

Documentos da embaixada alemã que o historiador austríaco Hans Schafranek cita em seu livro Zwischen NKWD und Gestapo ilustram essa questão. Na maioria dos casos, as deportações aconteceram sem qualquer gesto recíproco por parte dos nazistas para transferir presos procurados pelas autoridades soviéticas. As deportações continuaram até maio de 1941, poucas semanas antes da Operação Barbarossa, quando as relações entre os dois estados já estavam se deteriorando.

O impulso central por trás das deportações era interno ao sistema soviético. Os expurgos stalinistas começaram como um ataque a um grupo bem definido de pessoas: comunistas vistos como potenciais apoiadores da oposição. Com o tempo, práticas de tortura e outras formas de coação levaram os suspeitos a entregarem os seus nomes, junto a uma atmosfera generalizada de paranoia e desconfiança, em que o imperativo burocrático por quotas de detenção esticava ao máximo o número de alvos.

Fantasias e Fabricações

As acusações contra supostos traidores e espiões ganharam contornos bizarros. Um antigo líder da ala paramilitar do Partido Comunista Alemão, o Roter Frontkämpferbund, teria organizado um grupo terrorista “trotskista-fascista”. As autoridades soviéticas chegaram a acusar os filhos de comunistas exilados de formarem uma Juventude Hitlerista clandestina.

Regra geral, comunistas estrangeiros como Heinz Neumann enfrentavam acusações de serem pagos por seus respectivos “países de origem”. Stalin dissolveu o Partido Comunista Polonês em 1938 e mandou executar ou enviar seus membros para os Gulags, acusando-os de trabalhar ao mesmo tempo como agentes do governo de Varsóvia e a serviço de Leon Trotsky. Como observado pelo historiador Hermann Weber, dos quarenta e três líderes do KPD, mais morreram sob custódia da polícia secreta soviética do que foram mortos pelos nazistas. Centenas de exilados alemães foram executados de imediato, enquanto muitos outros morreram em campos de prisioneiros.

Nascido em 1887, Hugo Eberlein foi membro fundador do KPD. Ele substituiu Rosa Luxemburgo como representante do partido no congresso de fundação da Internacional Comunista em 1919. Eberlein chegou à União Soviética em 1936, mas foi preso no ano seguinte por suposto envolvimento em “atividades terroristas” em nome dos nazistas.

Uma carta à sua esposa, que mais tarde foi encontrada nos arquivos do NKVD, descreviam as privações, forçado a ficar de pé enquanto era interrogado de forma contínua “durante dez dias e noites sem pausa”, impedido de dormir e quase sem receber comida. Os guardas espancaram Eberlein sem remorsos: “Nas minhas costas não sobrou nenhuma pele, apenas a carne nua. Por semanas não consegui ouvir com um ouvido e um olho ficou cego por semanas.” O NKVD enfim o matou em 16 de outubro de 1941.

Vítimas de uma caça às bruxas

Buber-Neumann, Fabisch, Bogner, Eberlein e muitos outros foram vítimas de uma caça às bruxas. Seu destino dependeu de decisões burocráticas arbitrárias. Em centenas de casos, as autoridades soviéticas optaram por deixar que os nazistas encaminhassem as vítimas sem terem de se ocupar com elas.

Os nazistas enviaram Margarete Buber-Neumann para o campo de concentração feminino de Ravensbrück. Em abril de 1945, com o colapso do regime, ela foi solta. Com medo de mais uma vez ser presa por oficiais soviéticos com o avanço do Exército Vermelho, Buber-Neumann se deslocou 150 quilómetros para oeste, onde as tropas dos EUA eram a principal força de ocupação.

Buber-Neumann morreu em 1989, poucas semanas antes da queda do Muro de Berlim. Ela tornou-se uma conservadora de direita, argumentando que a sua própria experiência mostrava que o fascismo e o comunismo eram ideologias de criminalidade semelhante. Se os socialistas quiserem se opor a tais argumentos hoje, não podemos ignorar estes vergonhosos casos históricos. A nossa própria compreensão do socialismo deve cumprir as suas promessas com a dignidade humana no seu cerne. Não devemos menos às vítimas.


*Alex de Jong, militante holandês, é editor da revista socialista Grenzeloss

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