Uma nota sobre a tal “crise da democracia” contemporânea

Uma nota sobre a tal “crise da democracia” contemporânea
Giorgio Di Chirico, As duas máscaras (1926).

Por Felipe Demier, publicado em 05 de junho de 2024.

Tanto nos círculos acadêmicos especializados, quanto no âmbito do jornalismo político, é cada vez mais recorrente a ideia de “crise da democracia” contemporânea. Em ambos os espaços, por óbvio, há a hegemonia de uma perspectiva liberal-institucionalista que, assustada com a “irracionalidade” das massas que aderem ao “extremismo” e ao “populismo de direita”, não consegue mais do que captar a dimensão epidérmica da questão[1]. Evidentemente – e o caso brasileiro o expressa bem –, os analistas políticos da ordem, como bons "espadachins mercenários" da burguesia liberal-democrática, não fazem mais do que clamar por uma "governabilidade" que combine austeridade e "diálogo entre os poderes", como se assim a sua declinante democracia estivesse a salvo. Já entre uma intelectualidade crítica, parece haver um predomínio de sugestivos autores que explicam tal crise, sobretudo, por uma contraposição entre “neoliberalismo” e “democracia”[2], a qual estaria tendo como resultado um crescente processo de “desdemocratização”[3]. Orientadas por uma abordagem teórica de sabor neofoucaultiano, tais explicações, embora oferecendo muitos elementos importantes para a análise, nos parecem insuficientes para a real compreensão do fenômeno[4].

A nosso ver, a tal “crise da democracia” contemporânea, isto é, a crise da democracia blindada[5], é a expressão, ao nível do político – para recorrermos aqui ao léxico poulantziano –, de uma crise de hegemonia da burguesia. Vejamos isso de um modo breve.

Já propusemos, alhures, uma relação entre hegemonia e democracia, assim como entre crise de hegemonia e regimes políticos não democráticos[6]. Sendo a hegemonia, a nosso ver, a possibilidade de, em uma sociedade de massas, uma ou mais frações da classe dominante obterem êxito em dirigir não só os demais estratos dominantes, como também ampla parcela dos grupos dominados (capacidade das frações dirigentes em apresentar “os seus interesses particulares como interesses gerais da nação”, segunda a célebre sentença de Marx e Engels retomada por Gramsci), pode-se dizer que o modo de dominação pelo qual tal hegemonia se efetiva é a democracia liberal representativa. Dizemo-lo, pois, é nesta configuração política particular do Estado capitalista, isto é, neste regime político, que, por meio dos seus próprios partidos e instrumentos políticos diretos (o que inclui, cada vez mais, a grande imprensa empresarial), o setor dirigente da burguesia logra realizar uma combinação relativamente equilibrada entre coerção e consenso. Embora a primeira ocupe o papel determinante na estrutura de dominação hegemônica – como, aliás, ocorre em qualquer formatação do Estado capitalista –, é a forte dosagem consensual contida nesta que a distingue das formas de dominação não hegemônicas, nas quais a violência é nitidamente predominante e, em alguns casos, é quase exclusiva[7].

A nosso ver, portanto, é uma situação histórico-social hegemônica o que, entre outros fatores, possibilita à burguesia estabelecer sua dominação de classe por meio do regime político democrático liberal, no qual a violência estatal, indispensável e ininterruptamente presente (ainda que de forma potencial), recebe a companhia de ingredientes de natureza consensual, os quais costumam cotidianamente aparecer em um primeiro plano. Em outras palavras, afirmamos que uma dominação capitalista de tipo hegemônica se expressa, em termos de configuração política das instituições estatais, na forma da democracia burguesa – cujo bom funcionamento depende da coação para com os setores indômitos da classe trabalhadora, como também dos velhos métodos da cooptação material, parlamentar e ideológica das lideranças populares[8]. O consenso, como é sabido, não repousa apenas na ideologia, mas também naquilo de concreto, no hegeliano momento de verdade, em que a mistificação ideológica se fundamenta para que possa funcionar justamente como ideologia: as concessões do capital às massas populares, o que, em perspectiva histórica, se processou por meio das reformas no interior da acumulação capitalista, muitas vezes pela forma institucional do reconhecimento de direitos civis, políticos e sociais (e a possibilidade e o alcance de cada um destes estiveram sempre determinados pela etapa histórica do capitalismo e a correlação de forças entre as classes em luta).

Prosseguindo, é possível depreendermos que em momentos históricos nos quais as frações do capital mostram-se sem condições de exercer sua “hegemonia”, de colocar sob sua égide política o conjunto da “nação” por meio dos seus próprios partidos e instrumentos políticos diretos, as chances de manutenção da exploração capitalista por meio da democracia parlamentar convencional tornam-se escassas. Pode-se dizer, assim, que em casos de “crise de hegemonia” – os quais podem ocorrer “ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas”, ou porque estas últimas “passaram subitamente da passividade política para uma certa atividade e apresentam reivindicações que, em seu conjunto desorganizado, constituem uma revolução”[9]– as bases sociopolíticas do regime democrático liberal representativo, cuja existência corresponde, normalmente, a uma situação hegemônica, tendem a se esbarrondar.

Assim, consideramos que a crise da democracia contemporânea, ou seja, a crise da democracia blindada, guarda uma relação de determinação dialética com uma crise de hegemonia burguesa, de modo que, se a primeira aparece como uma expressão institucional/extra institucional da segunda (daí “os ataques às instituições” por parte do que os analistas do mainstream chamam de “populismos” ou “extremismos”), os impasses e turbulências verificados naquela acabam por ser, também, o próprio conteúdo desta. Trata-se, assim, da dificuldade crescente da classe dominante em preservar, ao menos da maneira como fazia até a crise de 2008, o regime democrático-blindado como a forma _ótima _e estável correspondente a uma acumulação capitalista cada vez mais total, predatória e destrutiva das condições socioambientais de sua própria reprodução, e que, portanto, dispõe cada vez menos da capacidade de produzir consenso, na medida em que o substrato concreto deste, as concessões às massas populares, é cada vez mais escasso.

Neste contexto de crise de hegemonia, de crise do funcionamento de uma democracia blindada contrarreformista que já quase nada pode oferecer às massas populares em termos de direitos sociais, o recurso a uma ideologia que outrora denominamos de puramente ideológica[10], isto é, praticamente desprovida do seu hegeliano momento de verdade (e aqui se encontram tanto as fake news propagadas pela extrema-direita contra as instituições democráticas, quanto aquelas provenientes destas últimas, como o dogma da “necessidade da austeridade”), assim como um uso cada vez mais intenso da coerção, estatal e paraestatal, se tornam nitidamente mais presentes. Contraditoriamente, as consequências da intensificação da austeridade e da violência empregadas pelas instituições da democracia liberal blindada não fazem senão acirrar a própria crise desta democracia, na medida em que, fortalecendo o aparelho repressivo estatal e arruinando as condições sócio-reprodutivas das massas populares, alimentam o crescimento do neofascismo.

Convém ressaltar que embora ocorram lutas e resistências populares ao redor do globo no pós-crise de 2008, em especial da parte dos setores racializados e particularmente oprimidos da classe trabalhadora (negros, imigrantes e mulheres), a crise de hegemonia e a crise da democracia blindada não são derivadas, ou pelo menos não o são substancialmente, dessas movimentações, em sua maioria defensivas, dos grupos subalternos. Pensamos que é importante assinalar tal aspecto para que a atual crise de dominação política do capital (crise da democracia/crise de hegemonia) não seja identificada como uma suposta “crise revolucionária”, decorrente de uma tão desejável quanto onírica “ofensiva do proletariado contra o capitalismo”. Assim, poder-se-ia colocar a questão da seguinte forma: ainda que não haja qualquer ameaça revolucionária no horizonte próximo, ainda que a classe trabalhadora se encontre, portanto, imersa num cenário de sucessivas derrotas desde a eclosão do neoliberalismo e a extinção das experiências burocráticas pós-capitalistas – ou seja, ainda que as massas não tenham passado “subitamente da passividade política para uma certa atividade e apresent[e]m reivindicações que, em seu conjunto desorganizado, constituem uma revolução” –, a burguesia monopolista se defronta com uma crescente dificuldade política de efetivar a acumulação capitalista, que exige cada vez mais contrarreformas, austeridade e espoliações, por meio do regime democrático-blindado, e o crescimento do neofascismo talvez seja a melhor expressão disso.

Recorrendo novamente às supracitadas linhas de Gramsci sobre a crise de hegemonia, é possível excogitar que se houve fracasso em “algum grande empreendimento político para o qual [a classe dominante] pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas”, este foi o neoliberalismo, a promessa de que com a redução dos gastos sociais do Estado e a retirada de sua alçada de uma série de setores econômicos e de prestação de serviços à população haveria um vultoso crescimento econômico a partir do qual o próprio mercado, agora livre das peias estatistas keynesianas e, portanto, de sua burocracia e de sua “política” – e a ideologia da democracia blindada sempre foi a do tecnocratismo antipolítico –, se encarregaria de melhor alocar os recursos segundo as necessidades (de quem???), promovendo o bem estar dos indivíduos, todos estes, claro, “cidadãos-empreendedores”. Ocorre que, como podemos verificar diuturnamente nos mass media, o neoliberalismo é como um médico que prescreve ao paciente as mesmas substâncias que o fizeram adoecer, mas sempre sob a alegação de que elas foram tomadas em baixas dosagens, e que, desta vez, em maiores teores, a cura virá. Assim, desde a crise de 2008, a única alternativa apresentada pela burguesia monopolista por meio da sua envilecida intelligentzia, toda ela atavicamente neoliberal, é ainda mais austeridade, corte de direitos e gastos sociais, financeirização, privatizações, contrarreformas de todo tipo, expropriações e espoliações várias, rebaixamento das condições sócio-reprodutivas daqueles que vivem ou tentam viver da venda da sua força de trabalho e mercantilização total da vida e da natureza.

Como decorrência da enorme crise social, a qual a gestão democrática-blindada só faz agravar via o acirramento do neoliberalismo (ultraneoliberalismo), emerge o neofascismo que, a despeito das particularidades nacionais, obtém alcance de massas ao se colocar contra o “sistema”, isto é, contra arranjo democrático-liberal blindado, ao passo que se apresenta ao capital monopolista como uma forma política que, justamente por dispensar o que ainda resta de liberdades democráticas naquele arranjo, seria capaz não só de executar as antipopulares medidas que a acumulação capitalista exige, como de o fazer contando com um significativo apoio tanto dos iracundos estratos médios conservadores, como também de massas já por demais descontentes com uma democracia cujas forças políticas preponderantes (grosso modo, liberais e social-democratas) só fizeram – e fazem – arruinar suas vidas. “This is a dirty job but someone has to do it – and I can do it for you!”, diz o neofascismo à burguesia monopolista, se apresentando, ao mesmo tempo, como o principal elemento de crise da democracia-liberal blindada/ crise de hegemonia e como a única e verdadeira solução para ela – ainda que uma solução não-hegemônica, dado que na configuração de um regime de tipo fascista os elementos coercitivos superam em muito os elementos consensuais, e justamente por isso a sua natureza eminentemente repressiva.

Destarte, se as alas ainda hegemônicas da alta e “ilustrada” burguesia – num contexto de crise hegemônica, vale sempre lembrar – parecem seguir optando pela preservação da democracia liberal _blindada _como a melhor forma política de execução das medidas antipopulares requeridas pela acumulação capitalista, o que implica intensificar a blindagem e a coerção da própria democracia (bonapartização do regime), outras alas, a princípio menos poderosas porém talvez majoritárias naquilo que Marx certa feita chamou de “massa extra-parlamentar da burguesia”[11], parecem já preferirem um fim com terror, do que um terror sem fim!” [12]. O permanente embate entre as tais “instituições democráticas” e os “populismos de direita” (estejam eles ou não no controle do Executivo) é a forma pela qual se expressa o conteúdo da crise da democracia blindada contemporânea, isto é, a crise de hegemonia de uma burguesia dividida e, talvez, indecisa, sobre qual é o melhor regime político para, nas atuais condições, realizar suas orgias cosmopolitas[13] enquanto faz da vida das massas ao redor do mundo uma verdadeira Gaza, onde há muito choro e ranger de dentes (Lucas 13:28-29).

Notas


  1. Em recente trabalho, o cientista político Luís Felipe Miguel realiza uma análise crítica de algumas concepções em voga sobre o tema, como a levantada pelos liberais LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. Ver MIGUEL, L. F. A democracia na periferia capitalista. Impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ↩︎

  2. É o caso de autores como STREECK, Wolfang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018; BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019; e DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. ↩︎

  3. BROWN, W. Op. cit. ↩︎

  4. Uma crítica a tais concepções foi feita por nós em DEMIER, Felipe. “Neoliberalismo, democracia liberal e a “crítica crítica” neofoucaultiana: um breve comentário”. Laboratório de Estudos Interdisciplinares Crítica e Capitalismo (LEICC), 5 de novembro de 2021. ↩︎

  5. Sobre o conceito de democracia blindada, ver DEMIER, F. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. ↩︎

  6. DEMIER, F. A teoria marxista do bonapartismo. São Paulo: Usina, 2021. ↩︎

  7. A ideia de que, para Gramsci, a “hegemonia” se constituiria em uma relação equilibrada entre coerção e “consenso” – na qual a significativa presença do segundo não retiraria o caráter fundamental da primeira – pode ser encontrada, por exemplo, em: BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. Todavia, outros renomados especialistas em Gramsci, de linhagem eurocomunista, trabalham com a perspectiva de que uma dominação de tipo hegemônica estaria baseada fundamentalmente nos aspectos de ordem consensual. Ver, entre outros trabalhos: COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999; e ______. Intervenções: o marxismo na batalha de ideias. São Paulo: Cortez, 2006. ↩︎

  8. “O exercício “normal” da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a força, situa-se a corrupção-fraude (que é característica de certas situações de difícil exercício da função hegemônica, apresentando o emprego da força excessivos perigos), isto é, o enfraquecimento e a paralisação do antagonista ou dos antagonistas através da absorção de seus dirigentes, seja veladamente, seja abertamente (em casos de perigo iminente), com o objetivo de lançar a confusão e a desordem nas fileiras adversárias.” (GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v. 3, p. 95.) ↩︎

  9. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Op. cit., v. 3, p. 60. ↩︎

  10. DEMIER, Felipe. Crônicas do caminho do caos. Democracia blindada, golpe e fascismo no Brasil atual. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019, p. 32. ↩︎

  11. MARX, K. O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 99. ↩︎

Receba no seu e-mail